A literatura para crianças é como uma semente de palmeira que, há mais de seis meses, um africano me vendeu, ali, para os lados do Martim Moniz. Num cesto pequenino tinha dez sementes ovais, duras, quase esquecidas. Era o seu negócio, tudo o que possuía, possivelmente o que lhe restava do seu país de sol e florestas onde talvez não regresse mais. Afagava as sementes, tocava-lhes e garantia:
— Leve, senhora! Primeiro, põe na água oito dias, depois mete na terra e rega pouco-pouco. Quando estiver quase a esquecer que tem lá uma semente enterrada, vai ver que nasce uma folhinha verde. Depois, é só esperar, que vai crescer até ficar grande, assim!
E com a mão de dedos esguios, marcava por alturas do coração o tamanho da palmeira. A convicção do vendedor e outras convicções que não vêm agora ao caso levaram-me a comprar a pequena semente. Meti-a na carteira, e nunca mais me lembrei que a tinha. Um dia, numa loja cheia de gente, abro o porta-moedas, a semente cai no chão e consegui pôr meio-mundo de cócoras a procurá-la como se tivesse perdido a maior preciosidade do mundo.
A menina da caixa lá a encontrou, debaixo do estrado. Uns senhores apressados já me olhavam como se eu tivesse fugido de um centro de doentes mentais em estado último de gravidade. Uma senhora, muito cheia de laca, ainda murmurou em tom bastante audível: — Pensei que andavam à procura de algum anel, mas aquilo não é um caroço?
Foi uma vergonha, mas recuperei a semente de palmeira que, subitamente, adquirira a importância de um amuleto, de um cristal contra as ondas negativas, como o que a Ana me trouxe do Brasil num saquinho que diz Princípio e Fim. Fui para casa, lá segui o conselho do vendedor de palmeiras – É preciso nunca faltar com a água – depois esqueci-me outra vez que a tinha semeado e fui plantar hortelã no mesmo vaso. Mas, ao mexer na terra, lá encontro a semente com uma quase invisível pontinha verde, a começar a germinar.
E agora tenho a certeza que, lá para o ano dois mil e tal, se Deus me der vida e sonho, vou ter uma palmeira africana, que depois se encherá de cachos de pequenas tâmaras...
A princípio, nas escolas, ninguém saía dos mais que insípidos e gastos textos do livrinho de leitura. Não tinham tempo, os programas são um horror, os inspectores uns chatos, só ligam a burocracias, aos papéis, querem lá saber de criatividade. Mas, a pouco e pouco, lenta mas eficazmente, os pelouros da cultura de certas autarquias foram alargando as iniciativas, organizando colóquios, abrindo bibliotecas, dinamizando a leitura, convidando os escritores e pronto! Nasceu a ponte para o outro lado da alegria.
Agora, aí andamos nós a caminho das escolas, calcorreando estradas, conversando com os meninos que trabalham nos textos, fazem exposições, querem saber coisas, escrevem poemas, cantam, recitam e nos olham por dentro da alma, sem se importarem se somos novos ou velhos, se estamos bem ou mal vestidos. E é isto, esta disponibilidade para a fantasia, para repartir o coração, para oferecer a flor, o desenho, o beijo, que comove e nos faz sentir que vale a pena.
Mas ainda há sítios em que se negam, em que ficam sentados na sombra, em que têm medo de sonhar, de soltar-se, de abrir as janelas das salas de aulas para entrar a luz e o perfume das estações.
Mas, hoje, tenho a certeza: como a semente de palmeira, o que é preciso é paciência; o sonho bem regado acaba por dar raízes! É só esperar! O africano é que sabe.
Maria Rosa Colaço
Ela ainda mora aqui
Lisboa, Ed. Escritor, 1998
Adaptação