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Ler uma história...

 



A árvore das folhas que doem

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  Era uma vez uma árvore que tinha umas folhas muito, muito bonitas.

   Na verdade, era uma árvore tão bela que, se alguém se concentrasse durante algum tempo a olhar para ela, as suas folhas doíam um bocadinho.

   Os animais que viviam nas redondezas não se cansavam de admirar a árvore, e mesmo alguns que moravam mais longe e andavam atarefados nos seus afazeres diários inventavam muitas vezes um desvio apenas pelo prazer de olhá-la uma vez mais.

   Olga, a tartaruga, o coelho Fialho, a mosca Francisca (que andava sempre a espirrar), os gémeos Passarinhos, o gato Renato, a lagartixa Tuxa e Esopo, o sapo, só para referir alguns, todos preferiam comer o lanche à sombra da árvore, enquanto falavam sobre as folhas da árvore e mediam a incomparável beleza dos seus ramos.

   E até mesmo o velho ganso, chamado Lourenço, que nunca apreciava nada de nada, quando olhava para aquelas folhas parecia que começava a gostar um bocadinho de algumas coisas.

   Porque é preciso dizer que a árvore tinha um efeito estranho sobre toda a gente. Por exemplo, a mosca Francisca, que estava sempre constipada, se olhasse para as folhas durante um certo tempo, deixava de espirrar. Esopo, o sapo, sentia-se alto e elegante. O coelho Fialho deixava de ter medo que lhe caíssem as orelhas e Renato, o gato, jurava que, quando adormecia sob a copa da árvore, tinha sonhos maravilhosos.

   Dizia-se que há muito, muito tempo, um sapo antigo que vivera por ali, provavelmente um tetravô do Esopo, se transformara num belo príncipe à força de tanto olhar para as folhas da árvore.

   Mas ninguém sabia ao certo.

   Havia sobretudo um menino, o Justino, que levava todo o santo dia a pensar na hora em que poderia correr a olhar a árvore. E não lhe passava pela cabeça que aquelas folhas pudessem algum dia desaparecer.

   Naquele sítio soprava muitas vezes, ao fim da tarde, um vento vindo do Norte, e era nessas alturas que o Justino mais gostava de observar a árvore balançando os ramos.

   Então, se tinha algum tempo livre, fizesse chuva ou fizesse sol, vinha para ali contemplar as folhas magníficas até lhe doerem um bocadinho no coração.

   E o mundo todo foi observar os pequenos rebentos novinhos em folha que despontavam agora nos ramos da velha árvore. A árvore era de folhagem perene: as folhas mantinham no fim do ano as cores vivas do mês de Maio e só no solstício de Verão ganhavam um tom alaranjado nas pontas, tão ligeiro que poderia ser apenas fruto da imaginação do menino Justino, pois só ele, que era o mais observador de entre todos, parecia reparar nisso. Nem mesmo o castor Heitor, proprietário de todo o monte e dono orgulhoso da própria árvore, nem mesmo ele daria pela diferença, não fossem as conversas que mantinha com o Justino a caminho do rio onde morava e perto do qual ficava a casa do menino.

   Ora, havia também naquele lugar alguém que, como toda a gente, adorava a árvore, mas tinha de andar sempre a correr de um lado para o outro: era o cavalo Gonçalo. Dizia ele que, só de olhar para as folhas da árvore, corria mais rápido do que o vento do Norte.

   E, um dia, lembrou-se de fazer uma proposta ao castor Heitor que foi a seguinte: como não podia parar ali mais do que dez minutos e tinha de andar sempre a correr de um lado para o outro, propunha ele ao castor comprar-lhe uma folha, que, nas suas viagens, o faria recordar a árvore e, quem sabe, galopar mais depressa.

   O castor não teve de meditar muito sobre o assunto. Achou logo que era uma óptima ideia e não só vendeu ao cavalo Gonçalo uma folha por uma nota de cem, como começou a pensar que poderia dispensar mais folhas aos outros animais, que decerto gostariam muito de poder recordar a árvore a qualquer hora do dia ou da noite.

   E foi um grande acontecimento naquele lugar, aquele dia em que o castor pôs à venda as folhas prodigiosas. Vieram animais de todo o lado, que fizeram uma grande fila que se estendia para lá do rio, porque ninguém queria perder a oportunidade de levar uma folha daquelas para casa, e aquele era efectivamente um excelente negócio em que todos ficavam a ganhar.

   O sapo entusiasmou-se com a ideia de apanhar banhos de sol flutuando na sua folha macia sobre as águas do rio; a mosca Francisca disse que, dali para a frente, se voasse sempre com uma folha pendurada no pescoço, por certo não mais espirraria; a tartaruga Olga ganhou um chapéu que ia lindamente com a carapaça; e a lagartixa Tuxa comeu a sua folha e ficou a brilhar como um holofote durante três dias. Estavam todos muito contentes e o mais feliz de todos era o Heitor que, de um dia para o outro, se transformou num castor rico, muito rico, na verdade o castor mais rico num raio de vinte e cinco milhas.

   Só que ninguém estava preparado para o que sucedeu no dia seguinte.

   Foi como se de uma vez o mundo todo tivesse entristecido.

   Os animais levantavam os olhos e nem podiam acreditar.

   Acabaram-se as reuniões à roda da árvore. Já ninguém lanchava ali. Alguns animais tinham mesmo perdido o apetite e deixado de lanchar de todo, e andavam magros, e tristes, e nervosos.

   E nem é preciso dizer que o gato foi dormir para outro sítio.

   Era uma dor de alma olhar para a árvore assim, sem o encanto.

   Os animais faziam agora desvios para evitarem aquele tronco despido, e as folhas separadas serviam só para recordar e aumentar o seu desgosto.

   A tristeza era tanta que o castor Heitor, que não conseguia sequer olhar para a árvore, achou que devia fazer alguma coisa.

   Ao menino Justino, desolado, parecia-lhe impossível recolocar as folhas nos seus devidos lugares, mas o castor queria voltar atrás e tentou comprá-las todas de volta.

   Só que as folhas, entretanto, tinham envelhecido, nem pareciam as mesmas. E algumas não podiam regressar: para muitos animais chegara a época de emigrar para longe. Outros tinham revendido as suas folhas à lagartixa que as comia de três em três dias, porque era agradável sentir-se iluminada por dentro, como um holofote.

   Alguns dias passaram; estava o castor sentado a contar o seu dinheiro, que somava precisamente noventa e nove notas de cem, quando teve uma ideia.

   Havia uma nota por cada uma das folhas arrancadas da árvore: talvez se pudesse alegrar um pouco o ambiente colocando-se as notas nos sítios e na vez das folhas perdidas.

   Pediu emprestado um novelo de baraça e, com a ajuda do gato Renato e dos gémeos Passarinhos, pôs-se a atar as notas de banco nos raminhos, e a árvore viu-se assim, de súbito, enfeitada com todos aqueles papelinhos coloridos. Os animais voltaram para ver.

   "É um pouquinho como o pinheiro do Natal", disse o coelho Fialho.

   Pelo menos, distraía-os um pouco da sua mágoa.

   O tempo mudou.

   Tinham chegado os dias de chuva, frio e céus carregados.

   E foi na própria noite em que o castor engalanou a sua árvore que o vento do Norte se levantou, mais forte que nunca, fazendo voar as notas de banco para muito longe, espalhando-as por todo o país.

   E o castor Heitor nada pôde fazer senão observar, de boca aberta, o dinheiro que desaparecia, a perder de vista, por montes e vales, para os lados de sudoeste.

   Passados os meses do mau tempo, quando os animais começavam a sair de novo mais vezes das suas casas, aconteceu então uma coisa que ficou para sempre na memória de todos.

   Tudo começou quando, na manhã de um dia de céu muito azul, o ganso Lourenço, até ali sempre tão circunspecto, correu esbaforido a avisar toda agente: "As folhas estão a nascer outra vez!"

   Deu-se também algo com que ninguém podia contar: as novas folhas cresciam fortes e saudáveis, mas... eram completamente diferentes das primeiras! Tinham outra forma e novas cores e até mesmo um novo aroma.

   Mas isso não desencorajou ninguém.

   Pelo contrário, todos ficaram felicíssimos com a nova folhagem que crescia agora, frondosa, a olhos vistos.

   E acreditava-se que aquelas novas folhas eram mágicas também.

   O certo é que eram belíssimas. Para além disso, tinham um aspecto tão apetitoso que foi preciso pôr o ganso Lourenço a guardar a árvore para evitar que a lagartixa Tuxa se aproximasse demasiado.

   E também o Justino ficou muito feliz quando viu a árvore, mas, sendo o mais inteligente de entre todos, sabia bem que não era a mesma coisa. Apesar da beleza que irradiavam, aquelas não eram as primeiras folhas, que existiam agora apenas na sua memória e que, se ele fechasse os olhos com força suficiente, doíam ainda um pouquinho no seu coração.

Miguel Veloso
A árvore das folhas que doem
Porto, Campo das Letras, 2003
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