Apresentação
... fazer filosofia não é uma questão de idades,
mas de habilidades em reflectir escrupulosamente
e corajosamente sobre o que se considera importante.
Mathew Lipman
A Filosofia para Crianças é um programa pedagógico que visa desenvolver as capacidades de raciocínio e do pensamento em geral, assim como as capacidades de verbalização do pensamento e aspectos cruciais da construção da comunicação, como o confronto de ideias e a reflexão em grupo. Esta aprendizagem multifacetada da actividade do pensar é feita através da criação de um diálogo, tem como fim promover o pensamento através de uma comunidade de investigação na sala de aula, onde as crianças são encorajadas a falar e a ouvir-se umas às outras e assim discutir ideias filosóficas na presença de um facilitador. O objectivo pedagógico não é o de informar as crianças da existência dos filósofos, das suas ideias e obras mas antes, contribuir para o desenvolvimento e compreensão da linguagem e das capacidades criticas e criativas das crianças de modo a promover o seu pensamento autónomo.
A Filosofia para Crianças foi originalmente desenvolvida por Matthew Lipman e Anne Sharp nos Estados Unidos da América no fim dos anos sessenta. Ao dar aulas na universidade de Columbia, Matthew Lipman apercebeu-se que os seus alunos não tinham adquirido a capacidade de pensar por si próprios. Lipman concluiu que era preciso fornecer aos alunos modos de desenvolver a capacidade de pensar antes dos alunos chegarem ao nível universitário. Podemos identificar como influencias teóricas de Lipman a tradição filosófica no seu conjunto começando pelo método socrático e a forma de diálogo das obras platónicas, e mais especificamente a tradição pragmatista que realça a importância da investigação em comunidade e da importância do processo de conhecimento. Encontramos também entre os autores que influenciaram Lipamn o psicólogo russo, Lev Vygotskii, que defendia que aprendemos a pensar tal como aprendemos a falar, ao internalizar os padrões linguísticos e de reflexão à nossa volta. Consequentemente Lipman desenha o seu programa considerando que já que pensar é, até certo ponto, assimilar a linguagem dos outros que nos rodeiam para aprender a falar connosco próprios, é necessário cuidar atentamente desse processo de aprendizagem. Um dos aspectos que Lipman dá extrema importância são os processo de questionamento no desenvolvimento das capacidades de raciocínio.
A partir desta visão sobre a educação do pensar, Lipman criou um modelo pedagógico baseado no conceito de comunidade de investigação onde tanto os alunos como o professor colaboram uns com os outros na reflexão sobre o mundo que os rodeia.
Assim, Filosofia para Crianças da metologia Lipman assenta em promover:
1) a pergunta como modo de abrir, problematizar e construir saberes;
2) a investigação criativa como modo de pensar nossa realidade individual e social;
3) o debate participativo, aberto e fundamentado como prática de conhecimento;
4) a democracia como forma de respeitar e valorizar nossas diferenças;
5) o trabalho solidário e colaborativo como modo de agir em educação;
e 6) a resistência crítica frente a toda forma de imposição.
O estudo sobre o efeito do programa Filosofia para Crianças feito nos Estados Unidos da América nos anos 80 mostrou que as crianças não só melhoravam as suas capacidades de raciocínio mas também que os participantes aumentavam as suas capacidades de leitura e as capacidades matemáticas. Além disso, os professores que trabalham com a metodologia testemunham frequentemente que a Filosofia para Crianças é um momento da sala de aula que permite um espaço onde se promove a auto-estima e a capacidade de comunicação em geral.
Desde dos anos 80 que a Filosofia para Crianças se espalhou pelo mundo inteiro, sendo a metodologia utilizada numa grande variedade de contextos, e muitos dos países começaram a desenvolver o seu próprio material para as sessões. Formou-se assim uma comunidade internacional que partilha o modo como aplica a metodologia, ao mesmo tempo que reflecte sobre os seus aspectos teóricos e o seu impacto nas ideias pedagógicas das ciências da educação. Ainda que diferentes países tenham começado a divergir no uso de material para dinamizar as sessões, todos mantêm em geral os princípios da comunidade de investigação tal como Lipman os desenhou.
Assim, pode-se dizer que em todo o mundo em que se implementa a Filosofia para Crianças se procura dinamizar uma comunidade de investigação de modo a que:
1) se pratique fazer perguntas e explicá-las;
2) se aprenda a ouvir as perguntas e comentários dos outros participantes;
3) se aprenda a identificar contradições, consequências e coerências das ideias expostas;
4) que se aprenda a saber enunciar o tipo de intervenção que se faz no diálogo (estou a dar um exemplo, a concordar, etc.);
5) que se saiba concretizar o que se diz através de um exemplo e se cultive a procura de contra-exemplos;
6) que se aprenda a fazer relações entre ideias (de sessão para sessão, e de uns participantes para outros);
e finalmente 7) que se pratique respeitar a diferença sem indiferença.
O que acontece na sessão de Filosofia para Crianças
A partir da leitura de uma pequena história as crianças colocam perguntas para serem discutidas. Estabelece-se então um diálogo a partir das várias opiniões que cresce no procurar de exemplos, na descoberta de relações de ideias, na criação de novas questões. Desde modo, as crianças encontram um espaço para dar voz aos seus pensamentos, às suas interrogações, ao mesmo tempo que aprendem a ouvir-se umas às outras.
A sessão começa normalmente com a leitura de uma história filosófica, ou um pequeno episódio de uma história filosófica. Estas histórias foram escritas de modo a suscitar perguntas sobre temas filosóficos e muitas vezes as personagens são crianças que fazem perguntas e conversam sobre esses mesmos assuntos filosóficos.
De seguida os participantes da sessão colocam perguntas sobre a história. As perguntas são escritas de modo a serem visíveis para todos os participantes. Normalmente esta parte da sessão termina porque já não há mais espaço para escrever perguntas e não porque não haja mais perguntas. Depois, lêem-se as perguntas e começa-se a organiza-las agrupando as que se relacionam e construindo uma ordem de prioridade à medida que se analisa o que a pergunta está a pedir.
Com a conversa sobre as perguntas acaba-se por escolher uma primeira pergunta para reflectir em conjunto. Aí a reflexão em grupo começa por pedir à pessoa que colocou a pergunta que explique porque é que teve aquela pergunta e o que acha que pode fazer com a possível resposta. Rapidamente os outros membros da comunidade começam a sugerir possíveis respostas para a pergunta. O papel do facilitador aqui aparece como crucial porque é da sua responsabilidade apontar contradições que apareçam na conversa assim como ajudar a aprofundar o dialogo entre os participantes. Por exemplo, numa sessão com uma sala da Infantil uma participante começou a sessão dizendo que achava que não havia magia e depois de muito conversa, acabou por afirmar que conhecia um mágico que era o seu pai. Neste momento o facilitador deve perguntar-lhe se ela continua a afirmar que não há magia, já que acaba de dizer que o seu pai é mágico. É frequente, com a pratica das sessões, os participantes ajudarem-se uns aos outros a pensar e por isso é natural que, como aconteceu nessa sessão, uma Mariana venha explicar que o pai da Rita é um magico especial e diferente, abrindo assim a conversa para a possibilidade de existirem vários significados para o conceito de magia.
A sessão acaba frequentemente porque o tempo da Filosofia terminou. Antes de dar final à sessão é importante fazer um resumo do que aconteceu na sessão apontando para uma possível sessão de continuidade temática se necessário. O ponto final da sessão é dado ao pedir à pessoa que colocou a pergunta e provocou a reflexão, que retorne à sua pergunta fazendo uma avaliação do modo como a conversa contribuiu ou não para a sua resposta.
Uma das partes importantes da Filosofia para Crianças são as histórias que servem como estímulos das sessões. No entanto o material de trabalho não oferece uma conversa "filosófica" sem que se cultive a construção de uma comunidade de investigação onde se cria hipóteses explicativas, se clarifica vocabulário, se pede e oferece razões, se dá exemplos de contra-exemplos, se questiona sobre o que está na base dos comentários dos outros participantes, onde se procure fazer inferências e seguindo o caminho da discussão de modo declaradamente social. Os participantes têm que partilhar as suas diferentes perspectives sem se acomodarem simplesmente ao facto de aceitarem que existem opiniões diferentes mas procurando ouvir-se uns aos outros, compreender as suas discórdias, desafiando-se uns aos outros apontando falhas de raciocínio e reconstruindo as suas próprias ideias face ao diálogo. Com a metodologia Lipman, o cultivo do pensamento critico não é um exercício vazio, mas uma pratica feita de forma viva e contextualizada.
O objectivo final das sessões de filosofia não é o de encontrar respostas conclusivas e finais para as perguntas levantadas, nem o de alcançar um consenso confortável entre os membros da comunidade. As sessões guiam-se por duas linhas condutoras: por um lado aprender a conviver com as perguntas filosóficas (clarificando as questões, revendo crenças, levantando novas hipóteses para futuras verificações, etc.) e, por outro lado, desenvolver as capacidades cognitivas e sociais que o processo de reflexão exige.
As Vantagens da Filosofia para Crianças
A descrição do programa Filosofia para Crianças já aponta para as suas inúmeras virtudes pedagógicas. É importante referir que, como afirmava John Dewey, uma das maiores falácias da educação é a convicção de que só se está a ensinar aquilo que nos dedicamos a ensinar. Na verdade estamos sempre a ensinar indirectamente inúmeras outras coisas. Assim embora vá apontar uma série de vantagens do programa Filosofia para Crianças penso que, tal como dizia Randolf Pausch, não enviamos os nossos filhos para aulas de ginástica porque queremos que saibam o desporto. Claro, é também por isso mas sobretudo porque aprendem outras coisas fundamentais como: trabalho de equipa, perseverança, lidar com os desafios e com os erros, lidar com as vitorias perante outros que gostamos, etc. A Filosofia para Crianças não foi desenhada para que todos os meninos se tornem filósofos mas para que tenham um espaço para aprender a reflectir em conjunto.
O programa oferece um espaço e modo de aprender a ouvir os outros, de praticar a continua aprendizagem de verbalizar o pensamento ao promover modos de ultrapassar confusões e ambiguidades, ao promover a expressão das convicções dos participantes de modo a torna-las explicitas (ou mais explicitas), permitindo um espaço para descobrir o prazer de brincar com ideias e conceitos, assim como aprender a identificar várias perspectivas sem cair no relativismo de opiniões (oferecendo um espaço onde se pode mudar de opinião à luz de novas razões e discussão sobre a sua validade) o que ajuda a ganhar autonomia de pensamento e a desenvolver capacidades para reflectir sobre questões éticas e sociais, como a identificação de critérios de juízos, identificação da relevância ou não dos detalhes contextuais, etc. Ao desenvolver a capacidade de concordar ou discordar, de pensar com os outros e de descobrir a reflexão cooperativa, os participantes intensificam a sua identidade permitindo um crescimento saudável da auto-estima, ao mesmo tempo que descobrem relações entre pensar, falar e fazer. Como um todo, a Filosofia para Crianças como foi desenvolvida por Lipman, com as seus utensílios pedagógicos (metodologia e material), aumenta a capacidade de leitura e compreensão de assuntos ao dar à escola um local onde os alunos podem reflectir sobre problemáticas que lhes enchem os dias.
Termino este pequeno elogio à metodologia descrevendo o modo como possibilita desenvolver a capacidade interrogativa. Sem dúvida cada uma das qualidades acima referida poderia ser alvo de uma descrição mais detalhada. No entanto a actividade de bem questionar é por excelência uma virtude filosófica que se revela na prática como uma das contribuições decisivas e importantes da Filosofia para Crianças. Temos tendência a pensar que perguntar vem com a capacidade natural de querer saber mais coisas. Por isso não encontramos na escolaridade em geral nenhum momento, espaço ou reflexão para treinar o fazer perguntas e perceber as perguntas. A Filosofia para Crianças mostra que fazer perguntas ao longo de um ano lectivo nos ajuda a melhor formular as nossas perguntas tornando-as mais incisivas, mais pertinentes, mais claras e mais dialogantes. Nas sessões os participantes têm oportunidade de aprender que para perceber a pergunta de outra pessoa por vezes não é suficiente ler a pergunta mas é necessário procurar o que provocou a pergunta e que direcção quem a fez lhe deu. Porque muitas vezes uma sessão roda exclusivamente à volta de uma pergunta que foi colocada por um dos participantes estes aprendem a reconhecer que para além da resposta existe a problematização e compreensão da complexidade que rodeia as perguntas.
Algumas perguntas sobre a metodologia (e algumas respostas demasiado curtas)
Quem deve ensinar Filosofia para Crianças?
Uma das questões que se levanta com frequência é saber quem deve ensinar Filosofia para Crianças. Se devem só ser pessoas com formação filosófica ou se devem ser os próprios professores da sala. Não irei elaborar sobre o que está por detrás desta difícil discussão. Basta dizer que quem o fizer deverá ter uma formação específica que lhe permita conhecer o programa metodológico pois o papel de facilitador requer uma formação cuidada que oriente a pratica das discussões.
Estamos a ensinar o que devem pensar?
A filosofia para Crianças não diz aos participantes o que devem pensar sobre os assuntos que aparecem para ser discutidos a partir de perguntas. Os temas são abertos e existem uma série de mecanismos usados pelo facilitador para aprofundar o tema em discussão, Mas a filosofia para Crianças não contempla nenhum momento para “ensinar” os conceitos e a tradição filosófica como se ensina os países em geografia.
Vão tornar-se pessoas mais responsáveis?
Muitas vezes me perguntam isto e sei que em parte o programa se apresenta como tendo uma vertente democrática e social que aumenta o saber estar em grupo. E dado que alguns dos assuntos que aparecem nas histórias são de teor ético e moral, os participantes de uma comunidade de investigação irão muitas vezes reflectir sobre questões éticas. E seria mesmo excelente para o programa pedagógico que se pudesse dizer que essa pratica os fará necessariamente cidadãos mais éticos e responsáveis. Mas a única coisa que podemos dizer é que tal como grande parte da aposta da escolaridade, a Filosofia para Crianças aponta nesse caminho mas não o pode garantir. No entanto podemos afirmar com segurança que é mais fácil saber pensar quando nos foi dado espaço e oportunidade para experimentar pensar aprendendo os passos fundamentais de uma reflexão cuidada.
Existem outras metodologias?
No seguimento da espantosa disseminação da metodologia Lipman apareceram outros autores que escreveram outros livros a que chamaram Filosofia para Crianças. Que seja do meu conhecimento nenhuma desses autores desenhou, como Lipman, uma metodologia pratica que acompanhe a "literatura filosófica". Assim, embora seja sempre de salutar toda o material pedagógico que alimente a capacidade de pensar e reflectir, não existem outras metodologias explicitamente organizadas que requeiram, como a metodologia Lipman, uma familiarização e treino por parte dos educadores.
Colaboração da Sociedade Portuguesa de Filosofia com o Portal da Criança.
Recursos de Internet de Interesse:
Site da Sociedade Portuguesa de Filosofia
http://www.spfil.pt/cpfc/index.htm
Institute for the Advancement of Philosophy for Children
http://cehs.montclair.edu/academic/iapc/whatis.shtml#what
Filosofia para Crianças à volta do Mundo
http://cehs.montclair.edu/academic/iapc/world.shtml#world
Childhood and Philosophy. A Journal of the International Council of Philosophical Inquiry with Children
http://www.filoeduc.org/childphilo/