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Ler uma história...

 



Uma chávena de cada vez

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  Nada parece juntar as pessoas como o Natal. O facto de eu estar na prisão não fez qualquer diferença. Mas a princípio não era assim.

   Os guardas tinham colocado uma árvore de Natal — com raiz e tudo — em cada unidade. A ideia era que os homens a decorassem com tudo aquilo que pudessem encontrar. A criatividade devia ser o nosso único limite, e a unidade que vencesse receberia gasosas e pipocas.

   A árvore ficou num canto durante uma semana. Parecia ser um símbolo da perda de dignidade que todos sentíamos por estarmos encarcerados naquela época do ano. Os reclusos que passavam faziam comentários sobre aquilo que se poderia fazer com a árvore. Eu também acabei por ser vítima da melancolia geral, que parecia condizer com as nuvens cinzentas que anunciavam neve no lado de fora da minha janela. As saudades de casa e da lareira deixaram-me num estado de profundo desânimo. Pensei na série de acontecimentos que me tinham trazido para aqui. Sentia-me tão deprimido que nem era capaz de sentir desprezo pelas pessoas que me tinham mandado para a prisão. Toda a culpa parecia recair numa pessoa – eu.

   Saí para o pátio da unidade e sentei-me numa cadeira a ver os outros passar – para irem a parte nenhuma. Afastei-me de alguns homens que estavam sentados no outro extremo de uma longa fila de cadeiras. A árvore estava mesmo em frente, com os ramos quebradiços devido ao abandono. As agulhas do pinheiro espalhadas pelo chão indiciavam falta de água, e, por muito revoltado que estivesse, não podia negar a uma árvore um pouco de água. Fui à minha cela, peguei na chávena, enchi-a no lavatório e voltei para junto dela. Estava quase com medo de mexer nos ramos, temendo que quebrassem. "A falta de água é o pior de tudo", pensei. Depois de várias idas e vindas com a água, uma chávena de cada vez, um recluso chamado Buck avançou com uma chávena maior também cheia de água.

   "Nem toda a água do mundo irá ajudar estas raízes", pensei. Então, um jovem chamado Shorty deu-me outra chávena de água. Foram precisas várias dúzias de viagens para levar água, até que as raízes provassem estar saturadas. Shorty esvaziou umas seis ou sete chávenas, enchendo o fundo do balde de lata que sustinha a árvore.

   — Para o caso de ela querer beber água mais tarde — disse ele.

   Enquanto estávamos em redor, como médicos que acabavam de salvar o primeiro paciente, foi Shorty que disse aquilo em que todos estávamos a pensar.

   — Parece um pouco despida, não parece?

   — Acho que podia descobrir alguma coisa para pôr nela — resmungou Buck.

   — Eu dou uma volta e vejo quem quer ajudar — disse Shorty, afastando-se numa direcção diferente da de Buck.

   Retirei-me para a cela com antigas recordações da escola a passarem na minha cabeça, quando cola e papel eram transformados em obras-primas maravilhosas, que a minha mãe exibia com orgulho. Os meus olhos fixaram-se num rolo de papel higiénico que colocara num canto. Em seguida, fui à procura de um frasco de cola branca que esquecera há muito. Depois de retirar os meus haveres materiais do baú, descobri, finalmente, a cola, guardada ao lado de umas cartas do meu ex-advogado. Gosto de ler estas cartas de vez em quando. São sempre boas para rir – ao ler de novo as promessas inúteis de que seria libertado em breve depois de um novo e rápido julgamento. Dizer que as palavras não mereciam o papel onde estavam escritas era mais verdadeiro do que imaginei.

   O papel tinha impressas umas tiras largas e douradas ao longo da margem esquerda. Uma centelha de criatividade ligava-me duas células do cérebro que tinham estado adormecidas demasiado tempo. Misturei a cola branca com água quente até obter uma pasta fina e leitosa. Em seguida, peguei no papel higiénico e desenrolei um pedaço. Mergulhando-o na mistura, pude espremê-lo e enrolá-lo em tiras compridas. Dobrei-as, dando-lhes a forma de rebuçados, e coloquei-os em cima do aquecedor para secarem e endurecerem.

   Com a alegria de uma criança, peguei nas cartas do meu advogado e, com um par de tesouras de bicos redondos, recortei a margem dourada de cada folha. "As cartas do meu advogado têm finalmente alguma utilidade", pensei, enquanto o radiador transformava as minhas criações em forma de rebuçado. Peguei na tira dourada de papel e enrolei uma faixa dourada num dos rebuçados que secavam. "Um belo trabalho", pensei, "mesmo que só o diga para mim mesmo." Estavam com bom aspecto e apetecia-me comê-los – eram vinte e quatro.

   Quando saí para a unidade, fiquei surpreendido ao ver uma multidão à volta da árvore de Natal. Buck coordenava os enfeites com todo o tacto de um director de um cruzeiro no Titanic. Correntes de papel feitas à mão e ornamentos estavam a ser pendurados em todo o lado. Alguém tirara algodão de três almofadas e fizera uma bola para construir um boneco de neve.

   Outro rasgara em tiras os sacos das batatas fritas e pendurava-as como se fossem fios prateados. Não fiquei nada desapontado quando os rebuçados se perderam no meio de outros objectos maravilhosos. Umas horas mais tarde, a árvore estava linda.

   Estávamos todos a admirar a nossa obra quando Shorty saiu da cela trazendo uma coisa nas mãos. Era um anjo. Cobrira uma garrafa plástica com seda branca que cortara do roupão, dando um manto ao anjo. A cabeça era uma bola de ténis coberta com o seu próprio cabelo. Cortara o rosto de uma revista e colara-o à cabeça do anjo. As asas eram feitas de penas de um pombo que devia ter apanhado no pátio. O nosso anjo parecia um pouco estranho, mas o que contava era a intenção. Buck puxou uma cadeira para Shorty e ele colocou orgulhosamente o seu anjo no topo da árvore. Shorty virou-se para nós com um sorriso acentuado pelas falhas de cabelo, perguntando:

   — Que tal?

   — Está muito bem! — disse Buck, e todos concordaram.

   A nossa unidade ganhou o primeiro prémio, e apreciámos as gasosas e pipocas. A nossa árvore foi posta no pátio para que todos desfrutassem dela, com a esperança de que sobrevivesse ao Inverno. Sobreviveu. O Verão seguinte foi quente. Uma seca matara tudo, tudo menos a pequena árvore de Natal, que foi regada durante todo o Verão. Os homens levavam-lhe água, uma chávena de cada vez.

Steven Dodrill

Jack Canfield; Mark Victor Hansen
Canja de galinha para a alma – O tesouro do Natal
Mem Martins, Lyon Edições, 2002
(adaptação)
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