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Poderes e Estagnação Educacional no 1º Ciclo do Ensino Básico
Janeiro, 2009
Joaquim Sá, Prof. Associado da Universidade do Minho, Blog: Em cada criança um génio da ciência!
geniociencia.blogspot.com

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  Em 1990 estava eu no início da carreira universitária na Universidade do Minho, depois de ter sido professor de Físico-Química do Ensino Secundário. Exercendo aí as funções de formador de professores do 1º ciclo e de educadores de infância, entendi ser suposto que eu fizesse investigação sobre os processos de ensino e aprendizagem das crianças em ciências experimentais. Eu acreditava que o conhecimento obtido por experiência e investigação, junto das crianças, me habilitaria a ser um formador mais competente. Mas a ideia de uma investigação dessa natureza não tinha ainda feito caminho no nosso país, o que tornava muito difícil encontrar um rumo.

  Havia um conjunto de possibilidades de investigação sugeridas pelo que se fazia para outros níveis de ensino, bem como pela literatura, que, todavia, não me suscitavam interesse e entusiasmo. Por exemplo, fazer uns inquéritos aos professores ou aos alunos, seguidos de umas análises estatísticas, era um caminho fácil e linear, mas isso nada tinha que ver com as minhas motivações. Interessava-me um conhecimento vivencial, construído numa relação directa com os alunos. Se eu não tinha qualquer ideia de como se poderia lidar com um grupo de crianças, nem do que era uma sala do 1º ciclo, os inquéritos analisados no gabinete nada acrescentavam a essa minha ignorância.

  Decidi então, de modo próprio, pedir a alguns professores do 1º ciclo que me abrissem as portas das suas salas e me permitissem ensaiar com os alunos pequenas intervenções de ensino das ciências experimentais. Esse processo exploratório (iniciado em 1990), que se prolongou por dois anos, deu-me em primeiro lugar a consciência viva de como se tinha parado no tempo em relação ao tempo da minha escola primária. Por outro lado, resolveu plenamente o desafio que eu tinha posto a mim próprio: assumir a condição de professor do 1º ciclo, competente em matéria de ensino experimental das ciências, de forma a incorporar a riqueza dessa vivência pessoal no processo de formação.

  Mas, para além disso, revelou-se uma experiência apaixonante e inesquecível no plano pessoal e profissional. Os resultados do trabalho que decidi fazer em salas de aula do 1º ciclo, caíam-me em abundância no regaço como fruta madura em tempo de colheita. O envolvimento das crianças nas actividades, a sua alegria e satisfação constantes, a atmosfera de efervescência intelectual nos grupos e, sobretudo, o desmoronar de ideias feitas sobre as aprendizagens "possíveis", fizeram-me sentir ter descoberto algo verdadeiramente fascinante. Tive o sentimento de ter descoberto um filão ainda virgem e por explorar, e que se abria perante mim todo um campo de trabalho a que me venho dedicando até hoje, a que se associaram entretanto outros colaboradores. E assim, reveste-se de pleno sentido a seguinte asserção de Karl Popper:

  -(...) penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia, (...): encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe - a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham uma solução. Mas mesmo que obtenham uma solução, poderão então descobrir, para vosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderão trabalhar com um sentido, até ao fim dos vossos dias. (Popper, 1989: 219).

  No trabalho continuado ao longo dos anos desenvolvemos uma teoria e uma prática de sala de aula a que designamos de ensino experimental reflexivo das ciências (ver http://hdl.handle.net/1822/8095). Nesse processo de ensino parte-se de questões, problemas e fenómenos que se tornam objecto de reflexão e investigação experimental. As situações experimentais são geradoras de diferentes ideias que suscitam a comunicação, a discussão e a argumentação entre os alunos. Estes podem recorrer de novo ao processo experimental para avaliarem a conformidade das ideias com a evidência, o que permite o abandono de certas ideias e acolhimento de outras. E todo o processo é mediado pela acção intencional do professor, que promove uma atmosfera de estimulação do pensamento e da criatividade, baseada em princípios de respeito mútuo, de liberdade de comunicação e de expressão da afectividade.

  Assim, no processo de ensino experimental reflexivo das ciências as crianças (Sá c/ Varela, 2004):
  a) Explicitam as suas ideias e modos de pensar sobre questões, problemas e fenómenos;
  b) Argumentam e contra-argumentam entre si e com o adulto quanto ao fundamento das suas ideias;
  c) Submetem as ideias e teorias pessoais à prova da evidência com recurso aos processos de investigação;
  d) Recorrem à escrita de forma regular na elaboração de planos de investigação, na elaboração de relatórios e no registo das observações e dados da evidência;
  e) Avaliam criticamente o grau de conformidade das suas teorias, expectativas e previsões com as evidências;
  f) Adquirem conhecimentos científicos partindo de diferentes perspectivas pessoais sobre as evidências, depois de discutidas e serem objecto de um processo de "decantação".

  Isto acontece realmente, em grupos bem organizados, trabalhando com alto sentido de responsabilidade, por onde o professor vai passando regularmente, por sua iniciativa ou a pedido do grupo. A competência fundamental do professor é a do questionamento reflexivo, que em cada situação e momento, fornece o estímulo intelectual e a adequação do grau de dificuldade, indispensáveis para que as crianças vão evoluindo para patamares de pensamento cada vez mais elevados (Sá, 1996; http://hdl.handle.net/1822/8165). As boas questões são as que vão de encontro à zona óptima de dificuldade na mente do aluno, ou seja, as que captam a zona cognitiva mais produtiva, fazendo o pensamento avançar.

  Deste modo - diz-nos a experiência de sala de aula - as crianças são capazes de superar complexos desafios de natureza cognitiva, com prazer e sentimento de realização pessoal. Atingem elevados níveis de sucesso em termos dos objectivos de natureza cognitiva, tradicionalmente valorizados, mas vão muito para além disso. Tornam-se pensadores activos e críticos, desenvolvem competências sociais, promovem a sua auto-estima, a motivação intrínseca, a autonomia, a capacidade de tomar decisões e aprendem a lidar de forma positiva com as situações de insucesso. A cada insucesso, avaliam criticamente a situação com a ajuda do professor e recomeçam com maior zelo e empenho.

  Os resultados da nossa investigação demonstram de forma clara que neste tipo de ensino as crianças desenvolvem as suas capacidades cognitivas (tornam-se mais inteligentes), melhoram a qualidade das suas aprendizagens no domínios da língua(1), no domínio das ciências, desenvolvem competências de resolver problemas novos e tornam-se mais reflexivos face aos seus pares. Todos estes indicadores foram medidos.

  Tudo isto é o resultado de práticas que têm sido validadas e aperfeiçoadas, de forma recorrente, por diferentes investigadores e professores, em diferentes contextos, com diferentes anos de escolaridade e que se distribuem no tempo ao longo de mais de uma década.

  Um processo de ensino tão fecundo, fez-me escrever em 1996, ao concluir a dissertação de doutoramento o seguinte:

  (…) o investigador tenciona empenhar-se em constituir uma equipa capaz de levar a cabo um projecto de investigação-acção cuja meta será a criação, no prazo de 5 anos, de uma rede de escolas do 1º ciclo a "fazer" ciências experimentais de forma regular, e de que resulte a formulação de uma proposta de estratégia de implementação das ciências no 1º ciclo a nível nacional. A viabilidade de tal projecto depende dos apoios políticos, institucionais e financeiros que conseguir angariar e dos recursos humanos que forem disponibilizados. (Sá, 1996: 513)

  Hoje não posso deixar de constatar que a convicção e vontade daquela altura tinham a dimensão de uma grande ingenuidade. Ao longo dos anos pude compreender que a audácia da inovação é uma forma de atrevimento que não se pode "tolerar"… Hoje tenho para mim que as dificuldades de progresso educacional no nosso país são antes de tudo uma questão de poderes e cultura que não suportam a inovação.

(1) Não testámos ainda a hipótese de que o ensino experimental reflexivo promove melhores desempenhos em Matemática, mas temos como certo que essa hipótese se confirmará. As capacidades cognitivas são de natureza transversal, ou seja, uma ferramenta com que o aluno opera na construção das aprendizagens de diferentes domínios curriculares.

Referências:

Popper, Karl R. (1989). Em Busca de um Mundo Melhor, Editorial Fragmentos, Lda. Lisboa.

Sá, J. (1996) Estratégias de Desenvolvimento do Pensamento Científico em Crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico. Tese de Doutoramento, Universidade do Minho.

Sá, J. com Varela, P. (2004). Crianças Aprendem a Pensar Ciências: uma abordagem interdisciplinar. Porto: Porto Editora.

Joaquim Sá
Prof. Associado da Universidade do Minho

Director do Mestrado em Ensino Experimental das Ciências no Ensino Básico (1º ciclo), iniciado em Setembro de 2008.
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