Na oficina do escultor, havia grande animação.
Chegara uma pedra de cantaria, que foi colocada no meio da sala por oito homens possantes. Oito homens, imagine-se! Pesado serviço aquele.
O escultor pagou-lhes e mandou-os embora. Depois olhou para o bloco, acariciou a pedra, deu uma volta por ali e saiu atrás dos carregadores.
A sala ficou vazia de gente, mas continuou cheia de estátuas. Seriam talvez umas dez estátuas dispostas junto às paredes. Algumas já acabadas, prontas para partir, outras à espera que a mão do escultor as desse por terminadas. Após a saída das pessoas, cabia-lhes agora a vez de falarem.
Afinal as estátuas falam? Sim, nas histórias, têm autorização para falar. Vão ouvi-las.
A que estava mais afastada do bloco de pedra perguntou às colegas:
— Que avantesma é aquela?
Houve risinhos entre as estátuas. Então, a que representava a Vaidade declarou:
— Companheiros destes não fazem cá falta, só ocupam espaço e tiram a luz a quem, como eu, precisa de ser destacada.
Era realmente muito vaidosa a estátua da Vaidade.
— A mim é que ela tira a luz — rectificou a estátua que representava um monge sentado a ler um livro. — Estou aqui, há imenso tempo, a ler este alfarrábio e não consigo passar da mesma página.
A estátua do Arlequim também se queixou:
— Aqui abafa-se. Apetecia-me pular e correr, mas esta pedra atravanca tudo.
A estátua do Atlas, o gigante que suportava o mundo sobre os ombros, acudiu:
— Se queres fazer alguma coisa de jeito, segura por um bocadinho na minha carga, porque quase tenho os braços dormentes. De caminho, aproveito e arrasto para outro lado essa maldita pedra, que já me está a causar engulhos.
Mas o Arlequim fez-se desentendido. Não estava para trabalhos.
A estátua inacabada de um rei qualquer ainda murmurou:
— Ordeno que... — mas, como estava muito incompleta, não conseguiu acabar a frase.
Na manhã seguinte, o escultor começou a trabalhar o bloco de pedra. Desbastou-o muito. O penedo foi ganhando forma.
As estátuas em roda olhavam para aquilo em silêncio, desconfiadas. Mal ele abalou, a estátua lá do fundo inquiriu:
— Que irá dali sair?
Respondeu o Arlequim:
— Um elefante, pois. Que outra coisa esperam?
Aquilo, de facto, intrigava. O escultor trabalhou dias a fio e, do coração da pedra, muito lentamente, uma figura começou a erguer-se. Adivinhavam-se os ombros, a cabeça, os joelhos. Parecia uma figura sentada, coberta com um lençol amarrotado.
Durante a noite, as outras estátuas não se calavam.
— Tem um ombro mais alto que o outro — observava uma.
— E uma cabeça monstruosa — acrescentava outra.
Mas a cabeça monstruosa, pela arte do escultor, foi-se transformando numa delicada cabeça de mulher. Estava sentada a estátua. Tinha as mãos no colo, como se guardasse algo, que ainda não conseguia distinguir-se bem.
— Naturalmente está a ler um livro — alvitrava o monge.
Afinal não era um livro o que ela olhava. Era uma criança. O escultor passara o dia a apurar as feições do bebé. No fim, antes de sair, alargou o sorriso da mãe e foi-se embora.
As outras estátuas, muito despeitadas, continuaram na má-língua.
— Que tempo mal-empregado — dizia a estátua da Vaidade.
— Não trocava a minha carga pela daquela mulher — declarava o gigante Atlas.
— Que boneco tão patareco — gargalhava o Arlequim.
Mas uma voz clara e nova naquela sala sobressaiu da restolhada venenosa das outras estátuas, para pronunciar estas palavras:
— Deixem-se de falas! O menino está a dormir.
Inspirava respeito aquela voz. As estátuas calaram-se.
Nos dias que se seguiram, o escultor demorou-se, pela noite adiante, a completar a estátua da mãe e do menino.
Era a sua mais bela obra.
António Torrado
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