FacebookTwitterGoogle+LinkedInNewsletter
Ler uma história...

 



A cor dos olhos

[Ler / Descarregar versão pdf]
  Naquele tempo, que não era como o tempo de hoje, os leões já tinham quatro patas mas, tal como os elefantes, não podiam meter-se por dois caminhos ao mesmo tempo!

   Naquele tempo

   naquela aldeia

   havia Fati e Issa.

   Fati dormia deitada numa esteira, sempre de barriga para baixo. Durante esse tempo, Issa sonhava deitado de costas, na cabana da mãe.

   Uma manhã, Issa convidou Fati para ir com ele à pesca, no grande riacho.

   — Fati, vens ou não pescar?

   — Vou, mas… e se o peixe não morde?

   — Ficamos à espera.

   Partiram com ele à frente, como sempre.

   Fati, que era cega, seguia-lhe os passos.

   A mãe dela, como todas as mães da aldeia, sabia fazer um bom molho com sementes e também uma mistura saborosa de inhame. O pai conhecia os remédios contra as serpentes e os génios malfazejos, e contra os anões ruins do mato que só fazem mal!

   Mas nem o pai nem a mãe sabiam transformar os olhos que não vêem em olhos que vêem!

   Fati e Issa caminhavam num estreito carreiro vermelho.

   Issa viu pássaros tecelões dar reviravoltas perto das folhas de um embondeiro.

   Fati ouviu-os chilrear.

   Tinha posto na cabeça um lenço para se proteger um pouco. Tal como Issa, sentia o sol a queimar-lhe os ombros como se fosse uma fogueira no mato.

   Não sabia nada da forma zombeteira das sombras, sempre um pouco maiores, mas conseguia adivinhar a grande boca do sol que sugava o céu com gulodice.

   Chegaram ao riacho.

   — A água está bem desperta — gritou Issa.

   Fati mergulhou o dedo e exclamou:

   — Esta água está toda molhada!

   Issa preparou uma linha para Fati e outra para ele.

   Deitaram-nas à água. Passou algum tempo.

   Issa inclinou-se para Fati e murmurou-lhe, quase a morder-lhe a orelha:

   — Não te mexas, vou andar alguns passos.

   — Porquê?

   — O sol está muito forte. Talvez encontre uma jujubeira que nos dê sombra.

   Afastou-se, apressado, para fazer algo que ninguém poderia ter feito por ele!

   Nada acontece sem se fazer anunciar...

   Fati, com a linha entre os dedos, estava tão imóvel como uma velha termiteira, quando sentiu um abanão na mão. Quando sentiu o segundo abanão, foi como se estivesse à espera dele, precisamente naquele momento. Puxou com um gesto seco e, quando ouviu a água a salpicar, não teve dúvidas: era mesmo um peixe que tinha mordido o isco e que ela estava a pescar. Com cuidado, para não assustar nada nem ninguém, levantou-se, puxando sempre a linha com a mão.

   Agarrou o pequeno peixe que dançava agarrado ao isco.

   Disse em voz alta, para si própria: "É de certeza uma carpa, uma carpa pequena e linda."

   — Uma carpa que preferiria voltar para a água em vez de assar ao sol — respondeu-lhe uma voz.

   — És tu, Issa?

   — Não é o Issa, sou eu — respondeu-lhe a carpa.

   — Mas quem está a falar? — perguntou Fati.

   Não obteve resposta. Pensou que tinha sonhado.

   Com cuidado, tirou o peixe do isco.

   — Ufa, obrigado. Assim está melhor — ouviu.

   — Mas de quem é esta voz que não conheço?

   — É minha. Sou a carpa que acabas de pescar, não vês?

   — Não. Tenho olhos mas não vejo.

   A carpa, que era menos medrosa do que uma tartaruga e mais faladora do que um quimbanda lisonjeador, continuou a falar.

   — Será que me podes dizer o teu nome, tu que me pescaste?

   — Fati.

   — Fati, se voltares a pôr-me na água do riacho, posso dar-te o mais belo dos presentes.

   — O que é o mais belo dos presentes?

   — É o que quiseres… exactamente o que quiseres.

   — Não existe o mais belo dos presentes.

   — Existe, sim!

   Fati pôs-se a rir e disse à carpa:

   — Pequeno peixe, podes ofender o génio da água com as tuas mentiras.

   — Não estou a mentir.

   — Então faz-me ver o mundo com os meus dois olhos.

   — O mundo inteiro?

   — O mundo inteiro.

   Sem pensar duas vezes, o pequeno peixe disse a Fati:

   — Pega em duas das minhas escamas, e põe uma em cada olho.

   — Depois...

   — Depois, nada. É tudo. Verás o que quiseres ver.

   Fati pegou em duas escamas e fez o que a carpa lhe tinha dito. Então, começou a ver de verdade, e os seus dois olhos tocaram o mundo.

   — Agora, podes ver quase tudo — disse-lhe a carpa.

   — Porquê "quase"?

   — Podes ver tudo, excepto os teus olhos. Com os próprios olhos, ninguém pode ver os seus próprios olhos.

   Fati pôs o pequeno peixe no riacho e ele continuou a viver como um peixe na água.

   Issa chegou.

   Fati, que nunca o tinha visto, viu-o aproximar-se.

   — Issa, estou a reconhecer-te.

   — É lógico, porque me conheces.

   — Reconheço-te com os meus olhos, não apenas com os ouvidos!

   Issa tinha parado a dois passos de Fati. Olhava-a bem de perto, e assim podia ver-lhe os olhos. Exclamou:

   — Mas o que é que se passa? Lavaste os olhos no céu?

   — E porque dizes isso?

   — Fati, os teus olhos estão azuis como o céu. Continuas negra, mas tens os olhos cor do céu!

   Fati contou-lhe tudo.

   Quando chegaram à aldeia, Fati ficou espantada por ver um só mundo com os dois olhos.

   No dia seguinte, de manhã, ouviram a aldeia a murmurar.

   Issa, que continuava a dar-lhe a mão, escutou as vozes ao mesmo tempo que ela.

   Viram chegar as três co-esposas do pai de Fati, e outras mulheres, e alguns homens.

   Tinham a boca cheia de maldades e gritavam. A seguir, chegaram os da aldeia. Eram piores do que animais loucos do mato. Gritavam:

   — Bruxa!

   — Fati, vai-te embora!

   — Não passas de uma bastarda do céu!

   — Bruxa azul! Deixa-nos, vai-te embora para sempre, tu e os teus olhos azuis!

   — Excremento de abutre!

   Puseram-se a atirar-lhe pedras e Fati não encontrou outra solução senão fugir. Issa, que tentara defendê-la, teve de fazer o mesmo.

   Depois de uma longa corrida, chegaram ao fundo, ao fim do fim, um pouco mais longe do que o horizonte.

   — Fati, eu gosto de ti.

   — Não tens medo dos meus olhos?

   — Fati, eu gosto de ti.

   Tinham-se sentado frente a frente, à sombra de uma jujubeira.

   Fati perguntou:

   — Será que fechando os olhos, acabamos com a maldade?

   — Não… não se acaba com nada. Se fechares os olhos, nem sequer acabas com as cóleras do mato.

   Calaram-se. Issa tomou as mãos de Fati nas suas. Fati tinha dois olhos para ver e chorar. Murmurou-lhe:

   — Eles têm medo. Estão cativos do medo que têm, e o medo faz esquecer o coração...

   Nesse dia, nesse tempo, que se parecia muito com o tempo de hoje, Fati e Issa tinham o coração ferido como uma velha cabaça.

   Levantaram-se e afastaram-se ainda mais da aldeia, talvez para encontrar a fonte dos quatro ventos do céu, aqueles que fazem as mesmas cócegas em todas as cores do mundo.

   Muitas estações das chuvas deram lugar a muitas estações secas.

   E ontem, na aldeia, um grande pássaro negro pousou na bela árvore vermelha florida. Era um calau.

   Um calau negro de olhos azuis. Sim, negro de olhos azuis! Todos o acharam belo.

   Este calau era um sinal. Logo que parou na grande árvore da aldeia, Fati e Issa chegaram.

   Fati sorria tal como Issa. Foi ela quem disse:

   — Bom dia, estávamos tão longe há tanto tempo… eis-nos aqui, os dois.

   — Bom dia!

   — Bom dia…

   Foram muitos os que lhes ofereceram a água das boas-vindas.

   No dia seguinte, Issa começou a construir a cabana deles.

   Tal como acontecera com os pais deles, foi na sua aldeia que tiveram os filhos.

   E foi assim.

   Foi o quimbanda quem mo disse.

Tradução e adaptação
Yves Pinguilly, Florence Koenig
La couleur des yeux
Paris, Autrement Jeunesse, 2001
[Ler / Descarregar versão pdf]


<<  voltar  |  topo  |  Todas as Histórias





Termos e Condições de Utilização
Copyright - Portal da Criança - 2007-2020
Desenvolvido por:
 CCEB