Nem sempre prestamos atenção às pessoas que nos rodeiam e, mais raramente ainda, procuramos saber qual é a sua história – será que nos falta ousadia?
Vinda de muito longe, Djuku é uma dessas pessoas; aqui está um pedaço da sua história.
1
No exacto momento em que parte, Djuku apercebe-se de que é a primeira vez que deixa a sua aldeia.
Desde o seu nascimento até hoje, Djuku viveu sempre rodeada pelos seus na pequena aldeia à beira da savana. Ela conhece cada recanto. E ninguém lhe é ali desconhecido. Do mesmo modo, todos os aldeões sabem quem é Djuku:
– Djuku? É aquela que sabe assobiar, melhor até do que um pássaro!
– Quando há por aqui almoço de festa ou de cerimónia, é sempre Djuku quem os faz: ela conhece todas as receitas e até inventa mais!
É verdade que Djuku cozinha galinha como ninguém, mas hoje Djuku vai-se embora. Decidiu partir para longe, muito longe. É que aqui na aldeia, apesar dos amigos, apesar das cerimónias, não há trabalho suficiente.
Fez-se à estrada e fixa os olhos na linha do horizonte para não se voltar, para não chorar. Bem, vamos lá a ver, partir assim é demasiado duro. Então, uma última vez, e antes que a aldeia desapareça na desordem das ervas altas, ela olha-a. Olha-a durante tanto tempo e tão apaixonadamente que todas as coisas onde o seu olhar toca entram no seu corpo.
Agora sim, Djuku pode pôr-se a caminho.
A velha guitarra de Quecuto entra no seu corpo. E com ela todos os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas.
A palmeira inclinada e o embondeiro do largo entram no seu corpo.
O caldeirão de Nhô-Nhô entra no seu corpo.
A casa de Pepito entra no seu corpo, apesar do seu tecto desgrenhado.
A barca e as redes de pesca de Benvindo que repousam sobre a areia entram no seu corpo. Sente que todas estas coisas estão dentro dela firmemente atadas como carga de um navio. Sente que, a cada passo dos muitos que dará, a aldeia estará consigo.
2
Durante a viagem de vários dias, as descobertas sucedem-se e deslumbram Djuku. Pouco a pouco, ela esquecerá a aldeia.
Atravessa imensas planícies acariciadas por ventos amistosos e cruza montanhas azuis onde chega a pensar que morrerá de frio. Incontáveis rios e ribeiras fazem-lhe companhia no seu périplo e, enquanto caminha ao longo das margens, as águas tumultuosas e murmurantes contam-lhe histórias fabulosas.
Muita gente se empurra na berma da estrada para a ver passar. Alguns aconselham-na a fazer meia volta, pois é uma grande loucura. Outros, pelo contrário, encorajam-na, oferecem-lhe pequenas prendas, que ela se apressa a dar por sua vez, mal entra numa nova aldeia.
"Convém ir ligeiro quando se viaja", diz ela de si para si, e logo acrescenta: "Gosto destes dias, gosto destes perfumes novos."
Pela primeira vez desde há muito tempo, Djuku sente-se extremamente feliz, pondo um pé à frente do outro com uma espécie de bebedeira. Pressente que a sua viagem chegou ao fim quando certa noite viu desenhar-se no horizonte uma barreira sombria de grandes edifícios iluminados aqui e ali por pequenas cintilações.
– Eis a cidade que eu procurava – disse Djuku simplesmente.
Decide que só entrará no dia seguinte.
3
Pela manhã, muito cedo, Djuku entra na cidade quase deserta àquela hora.
Alguém, todo vestido de amarelo, lava as ruas com grande quantidade de água. Um pouco mais adiante, um condutor de autocarro sem passageiros assobia alegremente enquanto faz manobras. Djuku ziguezagueia na calçada com a impressão de que caminha sobre terreno virgem.
Não presta atenção à grande mosca verde barulhenta que engole com uma boca gigantesca os últimos pedaços de noite, até que esta, depois de muito mastigar, se atira a ela. Djuku vacilou e quase caía se antes uma vaga de pessoas, vindas de lado nenhum, não a levasse em uma louca cavalgada. São milhares de homens e de mulheres que se precipitam para os seus locais de trabalho. Viram à direita e à esquerda, sem nexo, embrenham-se nas entranhas da terra para logo saírem mais adiante, sobem e descem escadas, corredores, ruas e depois avançam a golpes de gritos e assobios, de buzinas e apitos ululantes.
– É uma floresta de gente em marcha! – exclama Djuku, que nunca tinha visto tanta gente na sua vida.
Desta vez ninguém lhe oferece presentes, nem lhe pergunta de onde vem.
Djuku deixa-se levar ao sabor da corrente durante toda a manhã, incapaz de resistir, sacudida por uns, empurrada por outros, sem saber para onde ir. Ao meio-dia, quando a corrente diminuiu de intensidade, Djuku, com o corpo extenuado e os pés doridos, consegue escapar-se e vai encalhar um pouco adiante no banco de uma praça.
– Por pouco não me afogava nesta maré! – suspira Djuku massajando os tornozelos. — Ninguém me tinha dito que havia transumâncias.
Lentamente retoma o fôlego e passeia o seu olhar, tentando descobrir onde acabou por cair. É uma pequena praça, tendo ao centro um relvado careca, com um trio de árvores enfezadas e um cão minúsculo que cabriola entre uma e outra para as aspergir. A toda a volta estão casas de fachada rosa--cinza e umas quantas pequenas lojas.
Djuku repara que na montra de cada uma há um anúncio pendurado. Aproxima-se da loja mais próxima e lê: "Procura-se aplicadora de champô em cães mimados. Pede-se C.V."
– Isto não é para mim – diz Djuku – nem sei o que é!
A loja seguinte desejava encontrar rapidamente uma "comediante para duas tragédias" e o terceiro anunciava: "Uma profissão brilhante? Torne-se lavadora de azulejos."
– É demasiado arriscado. Para mim não serve! – suspira Djuku.
A quarta loja procurava uma "operadora-de-máquina-electricista a meio-tempo para grandes reparações em brinquedos delicados".
– Oh, isso é muito complicado. Também não é para mim – diz uma Djuku já desolada.
A quinta loja é um restaurante chamado BARRIGA DA BALEIA, e um cartaz escrito à mão explica: "Boa cozinheira? Entre depressa!"
– Claro que vou entrar! – exclama logo Djuku – Isto sim, é para mim.
CONTINUA …
Alain Corbel
A viagem de Djuku
Lisboa, Caminho, 2003