Sabia o que pretendia e o que tinha a fazer, mas ainda hesitava. Olhou fixamente o pequeno Rei, que parecia dormir tranquilo, sem de nada se aperceber, apesar da pressa e do alvoroço. De repente, o Menino abriu os olhos e fixou-os em Joaquim. Não havia nada de especial no olhar, nada de particularmente misterioso ou divino. Aquele que não soubesse a quem pertencia esse olhar, teria dito que apenas se tratava do olhar simples e terno de um bebé. Era unicamente o olhar de um menino. Mas… aí residia a solução do seu dilema.
O olhar do seu Rei era idêntico ao daquele menino que chorava ao longe, nos braços da mãe!
Agora compreendia, e as suas dúvidas desapareceram de imediato. Lentamente, sem que os companheiros se apercebessem, Joaquim afastou-se do grupo que corria e deixou-se ficar para trás. A princípio deteve-se; em seguida, assegurando-se de que ninguém se dera conta da sua fuga, desatou a correr em sentido contrário. Não podia voar, não devia chamar a atenção de ninguém. Ainda estava longe quando viu a mulher gritar. Tinha de se apressar. Sentia o galope dos cavalos e os brados dos soldados a aproximarem-se. Alcançou-os, por fim.
A mulher, em grande sofrimento, parecia prestes a morrer, mas, quando viu Joaquim, sorriu e disse:
— Salva o meu filho, suplico-te!
Não havia tempo a perder. Joaquim tomou o menino nos braços e correu por um declive que havia ao lado do caminho. Os soldados, que chegaram naquele momento, acabaram com a mulher sem piedade, e começaram a procurar o menino. A princípio, pareceram não se aperceber da presença do anjo. Depois, este ouviu um deles dizer:
— Vi alguma coisa mexer-se ali em baixo.
Toda aquela região estava cheia de arbustos e Joaquim não encontrara nada melhor do que refugiar-se no meio de um, bastante grande. Existia no interior uma pequena cavidade, e o anjo cobriu o menino com as asas, tornando-o invisível. Sentado no chão, segurava-o nos braços. Este estava acordado, mas não chorava. Olhava-o e quase dava a impressão de sorrir-lhe. Parecia-se com o pequeno Rei. Assim sentia Joaquim, a humanidade dos homens era a humanidade do seu Rei. Estava mergulhado nesse olhar e nesse pensamento quando…
De repente sentiu algo que nunca experimentara antes.
— O que aconteceu? — pensou. — Sinto uma dor fortíssima, penetrante.
Algo lhe trespassara a asa esquerda. Era a lança de um soldado que procurava entre os arbustos. Trespassara-lhe a asa, tendo-se afastado em seguida. Joaquim sentia que a sua luz se obscurecia. Ele não deveria experimentar essa dor física, pois era um anjo. E havia outra coisa: agora sentia medo!
— Vamos embora, aqui não há ninguém!
Joaquim sentia dores, mas continuava mergulhado no olhar do menino que tinha nos braços. Por culpa desse menino estava pela primeira vez a sentir dores. Podia sentir como ele sentia. E, no entanto, aquele olhar era maravilhoso. Não devido à sua inocência, ou a uma possível gratidão, dada a sua inconsciência do que estava a passar-se. Era um olhar maravilhoso, porque idêntico ao do pequeno Rei.
Logo que lhe foi possível, saiu do meio dos arbustos e dirigiu-se à povoação. Quando chegou, entrou numa casa, viu um berço completamente vazio e nele colocou o menino, que tinha adormecido. De outra divisão chegava o pranto de uma mulher, e podia ouvir as palavras de conforto que o marido lhe dirigia. Saiu rapidamente. A criança teria doravante uma nova família, e ele precisava de regressar ao seu grupo e à sua missão. A asa doía-lhe, mas a sua nova luz era agora mais resplandecente do que nunca.
Que importantes eram estes pequenos homens! Podia-se beber deles quase tanta luz como do manancial perene do céu.
— Joaquim!
Reconheceu de imediato a voz de Miguel, o seu general supremo, e permaneceu quieto, a tremer.
— Tu e os teus pensamentos! Tens sempre de fazer o que pensas!
Fez-se silêncio e os dois entreolharam-se. Entretanto, todos os que acompanhavam o general se detiveram.
— A tua desobediência terá um preço.
Seguiu-se outro instante de silêncio.
— E o teu amor terá um prémio. Receberás o teu prémio, mas pagarás um preço, porque amaste de uma maneira estranha e nova o pequeno Rei. Amaste-o da forma mais próxima do seu modo de amar, amaste-o, amando os homens que ele ama. Este será o teu prémio, e também o preço a pagar: ficarás no meio dos homens e velarás pelo teu Senhor. Não voltarás a ter de ir de um lugar a outro para estares ao seu lado.
Em seguida, Miguel aproximou-se e, sem que mais ninguém ouvisse, acrescentou:
— Alegra-te, poderás contemplá-Lo neles, e contemplá-los n’Ele.
Assim, em nome desta doce sentença, existe ainda, nos nossos dias um anjo com um buraco na asa, um anjo que todos podem ver, porque se encontra ali, ao lado do sacrário, por detrás do altar-mor, na catedral de Milão.
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— Pai, vamos embora, a missa acabou.
O pequeno Carlos puxava pela manga de Luís.
— Estiveste a dormir durante toda a missa!
— Sim, desculpa, filho, estava cansadíssimo. O que é que o padre terá pensado? Mas tu portaste-te muito bem. Agora fica bem atento, porque o anjo com um buraco na asa, o anjo enamorado da nossa humanidade, o anjo Joaquim, quer que eu te conte a sua história enquanto vamos para casa ter com a mãe.
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Nos anos da restauração do presbitério da catedral de Milão (entre as décadas de oitenta e noventa) foi preparada, por detrás do altar-mor, uma capela para as missas não festivas. Um dos anjos tinha realmente um buraco numa asa, em contraste com o seu companheiro, que possuía duas asas perfeitas.
Quem escreve pode assegurar que aquele que olhar atentamente para o seu rosto, em alguns momentos do dia, quando a luz que ilumina a capela é mais branca e mais pura, não poderá deixar de perceber, nesse rosto vigilante e sério, um subtil mas alegre sorriso.
Antonio Anastasio
Un agujero en el ala
Madrid, Ediciones Encuentro, 2008
(Tradução e adaptação)