Era uma vez uma árvore de grandes e frondosos ramos que vivia há muitos anos num jardim. Por baixo juntavam-se velhos a conversar, a apanhar sol ou a jogar às cartas.
Em frente, para trás e para diante, várias vezes por dia, passava um eléctrico pachorrento e amarelo. Trazia gente, levava gente, guinchava nos carris quando dava a curva antes de parar à beira do jardim.
Para onde iria? De onde viria? Que praças e ruas atravessaria? A árvore olhava o eléctrico e ficava a pensar como seria bom saltar para o estribo, comprar um bilhete e sair por aí fora, conhecer a cidade, o rio, as pessoas que nele viajavam com pressa de chegar ao emprego ou a casa, os meninos com pressa de chegar a toda a parte, os namorados com pressa de chegar a lado nenhum.
A árvore sonhava recantos coloridos, ruas a transbordar de música, praças cheias de palhaços e equilibristas, viagens impossíveis. Mas não podia sair do seu jardim. Estava agarrada às suas raízes e aos velhos que, à sua sombra larga, vinham descansar os ossos todos os dias.
Muitas vezes a árvore tinha tentado esticar os ramos e abeirar-se do eléctrico. Mas em vão. As árvores estão presas ao chão. Não nasceram para ser astronautas nem poetas. Ou melhor, a sua poesia é vegetal e está para sempre ligada pelas raízes ao coração da terra.
Ela, contudo, insistia. Pedira ao vento que a inclinasse e levasse os seus ramos a tocar nem que fosse ao de leve as rodas do eléctrico. Por mais que soprasse, o vento não tinha poder para tanto.
Pedira ao Outono que, quando levasse as folhas já castanhas, as fizesse entrar pelas janelas do eléctrico. Mas as folhas caíam direitinhas no chão e aí dançavam num imenso remoinho até chegarem as primeiras chuvas que as faziam cumprir o seu destino de voltar ao ventre da terra.
A árvore ficou triste, carunchosa, sem interesse pela vida, quase sem sentir a força da seiva que corria insistindo em mantê-la de pé.
Os passarinhos que faziam o ninho nos seus ramos, ao vê-la tão abatida, resolveram ajudá-la. Por ela partiram em todas as direcções acompanhando todos os eléctricos e procurando saber de onde vêm, para onde vão, que praças atravessam, quem é que levam, onde é que dormem.
Todos os dias os passarinhos partem e regressam com um sem número de histórias, paisagens e aventuras para contar à árvore que, ansiosa, os espera ao pôr-do-sol.
Até cair a noite, a chilreada não pára. Essa é a hora mais doce do dia para esta árvore. A hora em que se sente mais sábia e feliz e viajada.
José Fanha
A noite em que a noite não chegou
Porto, Campo das Letras, 2001