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A princesa da chuva

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  Quando nasceu a princesa Princelinda, há muito que as fadas andavam arredadas do Reino dos Reinetas, onde reinava o rei Reinaldo.

   Mas como a rainha Regina era muito conservadora e queria por força que a sua filha fosse fadada por três fadas, mandou pôr um anúncio em todos os jornais do reino.

3 Fadas precisam-se. Paga-se bem.
Resposta ao Palácio Real.

   Como por encanto, passados três dias, três fadas se apresentaram. Traziam vestidos de cetim com estrelas pintadas, chapelinhos em bico e as indispensáveis varinhas de condão.

   Um arrepio de espanto, incredulidade e alegria agitou o palácio.

   Os guarda-portões abriram as portas de par em par, os ministros, chamados à pressa, começaram a discutir a aplicação das fadas aos negócios do Estado. As damas sonharam com cremes de beleza confeccionados pelas fadas. As criadas acreditaram que ainda haviam de ter o destino da Cinderela.

   Só os cães não pareciam entusiasmados com aquela intromissão do sobrenatural e rosnavam, no desespero de não poderem atirar-se-lhes às canelas.

   Quando a rainha entrou no salão superlotado com a princesinha nos braços, as três fadas aproximaram-se.

   — Aqui estamos para fadar a vossa filha — disse a mais velha, que tinha a voz rouca e os cabelos todos brancos.

   — Fadai, fadai, senhoras fadas, porque sem fadas está muito difícil a vida dos reis — suspirou o monarca.

   — Ainda pior está a dos vassalos — murmurou o despejador de penicos da corte, que foi logo empurrado para o corredor.

   — Pois eu te fado, princesa — disse a primeira fada — para que sejas tão boa como nunca houve outra princesa no mundo.

   A segunda fada, que tinha grossos óculos de tartaruga, debruçou-se sobre a menina, beijou-lhe as bochechas rosadas, pronunciando as palavras mágicas.

   — Eu te fado para que sejas tão bela como nunca houve outra princesa no mundo.

   A rainha sorria enlevada quando a terceira fada, corcunda e ligeiramente coxa, se reclinou no sofá.

   — Para que eu tenha forças para fadar a princesa, preciso primeiro de um bom almoço.

   Voaram ordens até à cozinha; voaram tachos, panelas e frigideiras até ao fogão; voaram sopas, frangos, chouriços, ovos, doces, frutas, garrafas até à grande mesa onde, diante de três pratos de ouro, esperavam as fadas. E se bem esperaram, melhor comeram, como se as apertasse a fome desde o tempo em que as fadas andavam pelo mundo sem precisarem de ser chamadas por anúncio.

   Mal as fadas limparam os lábios aos guardanapos e alargaram os cintos apertados dos seus vestidos sarapintados de estrelas, a ama perguntou, respeitosamente:

   — Posso ir buscar a princesinha?

   As fadas olharam umas para as outras e, em coro, responderam todas três:

   — Se há tempo para fadar, há tempo para pagar.

   — Tereis um pagamento real — assegurou o rei.

   — Para mim — disse a primeira — quero o vosso coche de ouro puxado por dez cavalos.

   — Como vou eu passear ao domingo com a família? É o meu melhor coche... são os meus melhores cavalos... mas palavra de rei não volta atrás! — Pois eu — disse a segunda fada — quero apenas as jóias da rainha.

   — E como vou eu apresentar-me? Já se viu alguma rainha sem jóias?

   No entanto, palavra de rainha não volta atrás!

   — Pois eu — disse a terceira fada — contento-me com o dinheiro dos cofres do Estado.

   — Como vou eu fazer estradas? — gritou o ministro dos Transportes.

   — E eu escolas? — barafustou o da Educação.

   — Quem vai fazer hospitais, pagar médicos e remédios sem dinheiro? — perguntou o da Saúde.

   — Um exército não vive do ar. É preciso dinheiro para comprar espingardas, pólvora, canhões. Eu defendo o dinheiro dos cofres à bala! — bradava o ministro da Guerra.

   — Não será possível fazer um abatimento, senhora fada? — perguntou o ministro das Finanças. — É que o país está numa crise...

   — Uma fada não faz abatimentos — respondeu, implacável, a terceira fada.

   — Podia aceitar o pagamento a prestações...

   — Só a pronto, ou não fado a princesa! Então o primeiro-ministro teve uma ideia:

   — E se a princesa ficasse só fadada por duas fadas... já não é nada mau nos tempos que correm. Vai ser boa e vai ser bela. Que mais é que ela precisa?

   — Os filhos do povo nunca foram fadados e são mais rijos que os filhos dos reis — observou o enxota-moscas da corte.

   Os criados riram, à socapa.

   Então, a rainha arrancou a princesinha aos braços da ama e estendeu-a para a fada.

   — Isto aqui é uma monarquia. Quem manda somos nós. Quero a princesa fadada por três fadas.

   Fez-se um silêncio de gelo.

   A fada pegou na menina e, quando já tinha os lábios entreabertos e a varinha pousada sobre a testa da criança, ouviu-se um estranho ruído de água a cair. Era a princesa a fazer chichi.

   O vestido azul da fada pingava, as suas mãos enrugadas gotejavam como uma árvore depois da chuva.

   Um riso de escárnio e ódio riscou então o rosto da fada.

   — Eu te fado — gritou ela — para que sejas a Princesa da Chuva, para que chova sempre onde tu estiveres.

   E logo a chuva começou a bater nas vidraças.

   A rainha caiu desmaiada sobre um jarrão.

   O ministro da Justiça decapitou a ama pelo crime de não pôr calças de plástico à princesa Princelinda.

   Entre choros, gemidos, soluços, o rei mandou atrelar os dez cavalos ao seu coche de ouro. Para lá seguiu o cofre de marfim com as jóias da rainha, para lá seguiram os cofres de ferro com o dinheiro do Estado, atrás as fadas, com as varinhas debaixo do braço, uma velha, outra pitosga, outra corcunda.

   E o coche partiu, estrada fora, entre o medo abafado das gentes e o ladrar raivoso dos cães.

   Os dias, os meses, os anos foram passando.

   A princesa crescera em beleza e bondade.

   O rei deixara de sair à rua porque não tinha coche.

   A rainha deixara de sair à sala porque não tinha jóias.

   O reino deixara de ter estradas, escolas, hospitais, exército porque não tinha dinheiro.

   Sobre a capital, persistente, a chuva caía, caía, caía. As ruas tinham-se transformado em rios, as praças em lagos. As casas eram agora construídas sobre estacas. Os jardineiros plantavam nenúfares. Os fidalgos, em vez de irem à caça, pescavam das janelas. Os pastores guardavam bandos de patos e às portas do palácio, em vez de cães, havia gansos de guarda.

   — Tudo por causa de umas calças de plástico — choramingava a rainha.

   — Tudo pela tua antiquada mania das fadas! — emendava o rei.

   — Tudo por causa de uma malfadada princesa! — barafustava o povo, tanto e tão alto barafustava, que a sua voz chegou à torre mais alta do palácio mais alto, construído sobre as mais altas colunas, onde morava a princesa.

   — Se eu sou a causa de todo o mal desta terra, o melhor é mudar-me — reconheceu a princesa.

   Quando todos dormiam, pé ante pé, foi buscar a sua capa impermeável, o chapéu-de-chuva, as galochas e, a coberto da noite, fugiu num bote.

   No dia seguinte, um sol radioso pairava sobre a cidade.

   As fanfarras tocaram música de dança, os garotos vieram nadar em fato-de-banho, as mulheres estenderam a roupa a secar à janela.

   Quando o rei e a rainha acordaram à hora do almoço, ficaram encandeados com tanta luz. Correram ao quarto da filha para lhe mostrar o sol, que ela nunca vira, mas deparou-se-lhes o quarto vazio.

   Mandaram procurá-la por toda a parte, debaixo da cama, por trás dos cortinados, nos salões imensos, nas arrecadações, em todos os cantos da cidade. Nada!

   Decerto caíra à rua e morrera afogada!

   Ao fim de sete dias foi decretado luto nacional.

   Só que a princesa não morrera. Conhecia os mapas dos grandes desertos do Reino dos Reinetas, que os camelos a custo atravessam.

   “Aí é que eu fazia falta” — pensava ela muitas vezes...

   Incorporou-se numa caravana e logo uma estrada de chuva foi regando o areal.

   Em cada oásis onde pernoitava se enchiam os poços, transbordavam as cisternas, as palmeiras refulgiam.

   Os campos crestados que ela pisava tornavam-se verdes prados.

   As fontes cantavam, os riachos brotavam das pedras, os rios enchiam os leitos.

   As searas ondulavam, os frutos dobravam os ramos, as rosas floriam.

   Três anos a princesa calcorreou o país, até que não houve vila, aldeia ou lugar onde não chegasse o seu cortejo de chuva.

   Um dia, parando para descansar às portas da capital, ouviu um alarido de bombeiros, carroças transportando água, rapazes gritando.

   — Está a arder o palácio! Está a arder a cidade!

   A princesa não hesitou um momento. Saltou para um cavalo que comia feno, amarrado a um poste, e galopou a toda a brida. Atrás dela a chuva começou a fustigar a terra.

   À volta do palácio e por toda a cidade galopou e sobre ela a chuva se despenhava. Perdera a capa impermeável, os cabelos escorriam-lhe como cascatas pelas costas, o vestido colava-se-lhe ao corpo sob o chicote do temporal.

   Parava a gente, atónita, de balde na mão, perante aquela rapariga tão estranhamente bela.

   Quem era, donde vinha, porque galopava a chuva atrás dela?

   Só quando o último rolo de fumo se desvaneceu, desmontou do cavalo ofegante.

   Olhou então longamente em redor. Novas casas se erguiam, assentes na terra, ruas empedradas tinham surgido no lugar dos rios, praças com árvores e dálias onde os nenúfares abriam dantes aquáticas flores. Os cães tinham voltado a guardar o palácio e lambiam-lhe as mãos, em alegre reconhecimento.

   Um novo coche real brilhava na cocheira aberta, amontoavam-se os cofres do Estado e a rainha assomava à janela, carregada de pedrarias.

   — Princelinda, minha filha! — murmurou ela acenando, num espanto. — Princelinda!

   A princesa subiu a escadaria de pedra, percorreu os corredores até à chamuscada sala do trono.

   — Vais apanhar uma pneumonia, vens toda encharcada — disse o rei, beijando-a. — É melhor mudares de roupa.

   — Nunca me constipo, estou tão habituada... Já se esqueceram de que sou a Princesa da Chuva?

   — Realmente... — suspirou a mãe, pensando que tinha recuperado a filha mas perdido outra vez o sol.

   Princelinda contou então como andara de terra em terra, com a chuva a reboque, por montes e vales, serras e desertos, puxando-a para onde fazia falta.

   — Em vez de maldição, foi um dom que a fada me concedeu, afinal, ao fazer-me Princesa da Chuva.

   — É fantástico! — reconheceu o primeiro-ministro.

   — Só assim se explica a superprodução agrícola do nosso reino — afirmou o ministro da Agricultura.

   — Vão-se apagar os incêndios num instante! — exclamou o comandante dos bombeiros, esfregando as mãos.

   — Podemos alugá-la aos nossos aliados, em caso de seca — acrescentou o ministro do Comércio Externo.

   — Pois eu proponho — disse por fim o escultor Fídias Filete — uma estátua representando as fadas, a princesa e a ama que não lhe pôs as calças de plástico. Coitada, que a terra lhe seja leve...

   Esculpiu-se a estátua e para a sua inauguração a rainha mandou de novo pôr um anúncio em todos os jornais.

Fadas convidam-se
para a grandiosa inauguração
dia 3 às 3 horas em frente do Palácio Real.

   Mas nenhuma fada se apresentou.

   Como a princesa estaria, naturalmente, presente, ninguém compareceu sem guarda-chuva. De facto, uma chuva miudinha tombou durante toda a cerimónia, dando um lindo lustro ao mármore polido.

   Mal acabou a sessão, a princesa despediu-se dos pais.

   — Parto agora, às cinco, para o Norte, depois de amanhã desço pela costa marítima, para a semana sigo até ao interior. O meu programa vem anunciado no boletim meteorológico. Não se esqueçam de me escrever.

   — São tão independentes as raparigas modernas... Sempre em viagem! — notou o rei.

   — Vai ser um problema arranjar-lhe um noivo, que não se importe de andar sempre à chuva... — lamentou-se a mãe.

   E ficaram os dois, enternecidos, a olhar para as nuvens escuras que corriam no céu, pingando sobre a carruagem.

Luísa Ducla Soaraes
A princesa da chuva
Porto, Civilização Editora, 2007
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