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A loja do velho chinês (2ª parte)

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  4

   Quando acordou, encontrou o seu mundo tão drasticamente alterado que pensou ter sonhado. O sol brilhava e fazia-lhe cócegas, tal e qual como em casa, quando a mãe abria os cortinados. O gato, encostado a si, ronronava e queria brincar. Tal e qual como o gatinho lá em casa, quando era autorizado a entrar no seu quarto. Onde estaria ele agora? Continuava do outro lado do ecrã, obviamente. As paredes húmidas da casa fumegavam ao sol e a mãe desta família cozia bolos de farinha num braseiro. Cheirava bem e Milred sentia-se bem, embora habitasse agora um mundo que lhe era completamente estranho.

   Percebeu que o observavam. Era um olhar fixo e pesado, embora não fosse agressivo. Era antes extremamente curioso e interessado. O olhar pertencia à rapariga que, sentada junto da mãe, pegava nos bolos a queimar e colocava-os debaixo de um farrapo, sempre a olhar para ele. Milred sentou-se na sua cama improvisada e passou a mão pelos cabelos em desalinho.

   Acariciou o gato, que aproveitou logo para saltar-lhe para os joelhos, e sorriu para a rapariga que, embora fosse uma desconhecida, lhe tinha dado as boas-vindas através do olhar. Eram olhos enormes e intensos, do feitio de frutos. Quando a rapariga se levantou, Milred viu que era alta e magra, mais alta do que ele, se bem que não mais velha. Pôs o último bolo que a mãe fizera numa bandeja, juntamente com um copo de vidro cheio de um líquido fumegante, talvez chá, e colocou tudo diante de Milred. Enxotou o gato e foi de novo sentar-se. A mãe nem sequer se virara.

   Milred devorou o bolo como se não comesse há meses. Era a primeira vez que o seu estômago aceitava bem comida. Mal acabou, a rapariga aproximou-se com outro bolo. O rapaz queria recusar, fazer cerimónia, mas acabou por comê-lo. Desta vez, comeu mais devagar, para saborear melhor. A mãe tinha saído e só ele e a rapariga estavam em casa. Contudo, parecia-lhe ouvir um rádio a tocar em surdina. Descobriu, por fim, depois de os olhos se terem habituado ao contraste entre a luz e a sombra, a presença da avó da família. Estava coberta por um véu negro e as suas mãos dedilhavam um terço. Balançava o corpo e cantarolava sem cessar. Afinal, o ruído que ele ouvira não provinha de um rádio.

  

   Milred teve vontade de rir. A rapariga adivinhou o que tinha acontecido e riu também. Milred gostava de guerras e de bombons, mas não gostava de raparigas. Na escola nunca brincava com elas, porque as achava muito estúpidas. Costumavam juntar-se em grupinhos a cochichar, em vez de jogar à bola ou de correr, como ele e os outros rapazes faziam.

   Mas esta não era uma rapariga como as outras. Esta era quase uma amiga, porque adivinhava o que ele pensava, sem se impor. Por exemplo, Milred queria sair e passear um pouco e, sem que lho dissesse, já ela se levantava. O rapaz calçou os sapatos e foi ter com ela à esquina da rua.

   À esquina de uma rua porque, ao contrário do que tinha pensado, esta não era uma casa isolada. Estava integrada numa aldeia, construída no bordo de uma falésia. Uma aldeia com crianças que brincavam, com adultos atarefados, e burros transportando fardos. Mal viram Milred, os mais novitos juntaram-se à sua volta, fazendo perguntas sem cessar, sem que ele percebesse o que diziam. A rapariga aproximou-se e mandou-os embora, no que foi prontamente obedecida.

   Pediu-lhe que a seguisse, embora não pronunciasse palavra. A dada altura, a falésia desembocava num desfiladeiro, que se alargava à medida que caminhavam. No leito de um rio agora seco, havia lojas e casas, dispostas em cascata, tão animadas como a rua pedestre de uma cidade em época de saldos. Com a diferença das luzes, lá sempre acesas, e dos barulhos e odores, aqui em profusão. Milred não tinha medo, embora tudo lhe fosse estranho. Talvez porque a presença da rapariga o fizesse sentir em casa. Sentaram-se junto de uma fonte a comer um gelado.

   A rapariga continuava sem falar. Milred chegou a pensar que poderia ser muda, porque pôs-se a desenhar para ele. Desenhou no chão uma casa grande e colocou lá dentro o pai, a mãe, a avó e o gato. Os dois rapazes que desenhou no exterior da casa, afastando-se sob as bombas, com uma espingarda na mão, deviam ser os irmãos. Apagou tudo com a mão e desenhou depois uma flor, apontando para si. Chamava-se Flor. Milred saboreou a doçura desta amizade inesperada. Já tinha esquecido a guerra e as surpresas dos jogos de vídeo.

   5

  

   Fazia muito calor quando Flor lhe pediu que a seguisse. Tinham acabado de comer. Já não havia sol em casa, embora ainda brilhasse lá fora. A vida parecia ter feito um intervalo. O gato dormia num canto fresco e a avó tinha cessado de cantarolar. A aldeia tinha um ar abandonado. Os cães já não uivavam e as crianças tinham-se escondido. Mas Flor não caminhou em direcção à aldeia. Caminhou em direcção ao deserto.

   Apesar do calor abrasador, caminhava depressa, esgueirando-se por entre os arbustos de espinhos. Milred temeu perdê-la de vista várias vezes, mas a rapariga esperava sempre por ele. Caminharam durante muito tempo até chegarem a uma paisagem dominada por cactos enormes. Cactos de flores vermelhas e braços gigantes, tão altos que encobriam por completo a falésia que tinham deixado para trás.

   Mesmo que quisesse, Milred não saberia voltar para trás. Não que tencionasse fazê-lo, pois depositava uma confiança absoluta em Flor. Enquanto caminhavam, esta mostrava-lhe pequenas coisas: uma serpente, que se afastava a assobiar; um pássaro de bico pontiagudo, que abandonava assustado o ninho que fizera dentro do cacto; um rato divertido, que saltava como um canguru; um escorpião agressivo, que recuava de cauda em riste. Por vezes, nem chegava a ver o que ela queria mostrar-lhe. Havia vida por todo o lado, mesmo que parecesse que só o ar quente se movia. Milred compreendeu, por fim, onde Flor queria levá-lo. Entre dois cactos gigantes, descortinou um promontório rochoso, que se erguia por entre a floresta.

  

   Uma vez chegados ao sopé da rocha, Flor começou a escalá-la, ágil como um macaco. Milred estava exausto. Arranhando as mãos e os joelhos, lá conseguiu chegar ao topo, sem se queixar e sem pedir ajuda. O seu espírito de vencedor tinha levado a melhor. A rapariga já estava sentada, tranquila e imóvel sob o sol escaldante. Parecia uma figura egípcia, com os olhos em amêndoa, e os cabelos negros húmidos de suor. Era a primeira vez que Milred achava uma rapariga bonita. Até agora, sempre as vira sem as ver. Sentou-se junto dela, a sorrir para disfarçar o cansaço, e limpou o suor da fronte antes de levantar os olhos. Nunca tinha visto nada de tão belo. Excepto no cinema ou… não se lembrou logo onde.

   O local plano onde estavam sentados era o tipo de sítio onde os Índios vão para avistar os sinais de fumo. O horizonte parecia uma paisagem saída de um western: havia extensões de cactos a perder de vista e montanhas que pareciam bancos para gigantes, mergulhadas num silêncio absoluto e angustiante, quebrado apenas pelo estalar das pedras, que pareciam vibrar sob o efeito do calor. Flor queria partilhar com ele a beleza do seu país, sem que precisasse de ouvir os seus elogios. O seu orgulho de pertencer àquele lugar não precisava de confirmação.

   Enquanto contemplava e escutava, Milred tinha deixado de sentir o calor abrasador do sol na sua pele. O seu ombro tocava agora o de Flor, mas esta não se afastara. Pelo contrário, apoiava-se nele, tranquila. O rapaz ouvia o bater do coração dela, tão rápido e nervoso quanto tranquilizador. Sem o saber, estava decerto apaixonado, porque demorou a dar-se conta das nuvens ameaçadoras que toldavam o horizonte.

   6

  

   A luz tinha mudado. O sol estava agora toldado, como se a noite fosse cair cedo, demasiado cedo. Uma luz artificial e azulada banhava o local, feita de mil pontinhos tremeluzentes. Uma luz de ecrã de vídeo. Milred foi o primeiro a reagir. Levantou-se e gritou:

   — Cuidado, Flor!

   Nunca soube se a tranquilidade dela se devia à surpresa ou se ao conhecimento do que ia passar-se.

   — Cuidado! Ele está a escolher as hipóteses e vai começar o jogo!

  

   Algures encontrava-se um jogador anónimo, com os olhos cravados no ecrã, do lado do mundo que fora o de Milred. O palpite deste foi confirmado por uma saraivada de balas que fez ricochete no lugar onde se encontravam. Era o jogo Caça ao homem. Milred conhecia-o por o ter jogado, embora não gostasse dele. Escolhiam-se as armas e o cenário, mas o princípio era sempre o mesmo: num deserto, numa savana, ou numa floresta tropical, elegia-se como alvo alguns selvagens assustados, que só tinham as pernas para defender-se e fugir, e que deveriam a sua salvação apenas a um conhecimento perfeito do local.

   Milred não gostava deste jogo, porque era demasiado cruel. Tinham de deixar o promontório o mais depressa possível. Estavam demasiado expostos. Pegou na mão de Flor e conduziu-a para a primeira falha na rocha que encontrou. Abrigar-se-iam aí antes de tentarem uma descida, que seria sempre perigosa.

  

   Flor recuperou todos os seus reflexos. Na realidade, nem sequer os tinha perdido. O seu rosto, belo e impassível, era capaz de guardar segredos, de ocultar os seus sentimentos mais imediatos. Observava a falésia com cuidado, procurando uma descida segura.

   — Por ali! — sussurrou a Milred.

   Haviam de conseguir escapar. O rapaz recobrou ânimo. Flor conhecia bem o terreno e ele conhecia toda a panóplia de armas de que o jogador dispunha, as manhas que ele empregaria. Haviam de ganhar esta partida. Milred sabia, por experiência própria, que as cavidades da rocha que utilizariam para descer iam impedir o jogador de atingi-los.

   Sabia, também, que o jogador poderia lançar redes para apanhá-los. Quando viu uma delas, desviou Flor do seu trajecto.

   — Espera! — impediu-a, enquanto as malhas da rede prendiam um pedaço de rocha. — Vamos agora!

   Chegaram finalmente ao sopé. A partir dali, o terreno era infelizmente mais aberto, mas também mais propício a uma fuga rápida.

  

   Milred tentava imaginar o que se passava na cabeça do jogador. Conseguia imaginá-lo, sentado na cadeira com os braços estendidos, ou deitado sobre um tapete, como outrora ele fizera. Devia estar a fazer contas ao capital perdido, ao carregamento de armas desperdiçado, aos segundos que passavam sem nenhum ponto ganho. De certeza que compensava a frustração debicando nervosamente pipocas, que meteria na boca às mãos cheias.

   — Vamos descansar um pouco — sugeriu a Flor.

   Milred lembrou-se de que, caso não conseguisse atingir as pessoas, o jogador tentaria atingir animais. Ganhava menos pontos, mas sempre era melhor do que nada. E assim foi: mal uma corujinha saiu do abrigo, foi logo pulverizada. Vários animais encontraram assim a morte, juntando-se ao odioso palmarés do jogador.

   — É agora! Ele deve ter-nos esquecido.

   Correram em direcção aos cactos maiores e mais altos que, contudo, lhes ofereciam um abrigo pouco eficaz.

   — Fica aí!

  

   Deviam dispersar. Juntos, constituíam um alvo demasiado fácil. Milred dirigiu-se para um novo refúgio. Uma rajada destruiu subitamente o braço estendido de um cacto. O suco fresco caiu sobre a fronte de Milred, como se fosse sangue. Estavam de novo no ponto de mira do jogador.

   — Corre, corre! — disse ele a Flor.

   Uma rede descia sobre a planta atrás da qual ela se escondera. A rapariga conseguiu sair do abrigo sem ser apanhada pela rede, mas uma bala raspou-lhe a mão. Pela primeira vez, o seu rosto perdeu a placidez habitual e fez uma careta de dor. Mas logo consolou o amigo:

   — Não foi nada. Só um arranhão.

   "Cretino!" pensou Milred. "Tudo isto por uns míseros cem pontos a mais. Deve estar contente."

   Era Flor quem tinha de indicar o caminho para a aldeia. Só ela poderia encontrá-lo. Milred esboçou um plano. Tinha apanhado um lagarto com uns dentes enormes, embora fosse inofensivo. Hesitava em sacrificá-lo, mas não tinha outra alternativa. Lançou-o para trás de si e, enquanto o outro gastava previsivelmente as munições no pobre bicho, Flor tinha-se afastado alguns passos. Até que deu um passo a mais. O jogador fingira deixar de prestar atenção às suas presas preferidas, mas continuava atento. A rapariga foi atingida mortalmente nas costas. Pairou no ar por uns momentos, e caiu depois lentamente, transformando-se em pó vermelho do deserto ao tocar o chão.

   — Flor! Flor! — gritou Milred.

  

   Desatou a correr, na esperança vã de poder ainda abraçar a doçura do corpo dela. Os projécteis passeavam livremente em seu redor e Milred cessara agora de tomar precauções. Levantou os braços, como que a dirigir-se a quem estava por detrás do ecrã e pediu:

   — Por favor pára! Isto já não é um jogo. Trata-se da Flor, trata-se de mim…

   Foi atingido em pleno peito, o que daria ao jogador o máximo de pontos. Teve apenas o tempo suficiente para imaginar o entusiasmo do vencedor do outro lado do ecrã. Depois, tal como Flor, desfez-se em mil pedaços, antes de desaparecer no vácuo do deserto.

  

   7

  

   Quando, no dia seguinte, a mãe de Milred o encontrou deitado sobre o tapete de lã do quarto, sentiu muito medo. E com razão. O quarto estava virado de pernas para o ar. Os peluches estavam todos espalhados, os posters rasgados, e a televisão partida tinha caído da prateleira.

   — Milred, meu filho! Milred! — chamou a mãe.

   Com os olhos revoltos, como se não a visse, o rapaz murmurava uma série de palavras incompreensíveis que se referiam a uma rapariga chamada Flor, da qual a mãe nunca ouvira falar. Foi buscar ajuda.

   Quando o médico chegou, já Milred estava um pouco mais calmo. O médico, que conhecia Milred há muitos anos, porque era o médico da família, reparou numa consola de jogos partida e em caixas dispersas por todo o lado. Lembrou-se de certos artigos que lera sobre os abusos dos jogos de vídeo, que até agora nunca tinha tomado muito a sério.

   — Este rapaz está sempre muito nervoso. É preciso cuidado. Actividades calmas e repouso, é o que lhe receito. Não tem nada de grave.

   — Nada de grave? — balbuciou Milred. — Isso é o que diz! Para mim não foi, mas para a Fl…

   Nem sequer conseguiu pronunciar o nome dela.

   Sensato e obediente, tomou todos os medicamentos que lhe deram. Não precisava de um médico. Precisava do velho chinês. Logo que pôde sair, foi direito à loja, onde encontraria a chave para o enigma. Quando chegou à rua certa, abrandou o passo. A loja não tinha sofrido alterações. As luzes estavam apagadas e os vidros sujos, como sempre. Na porta, em letras negras sobre um fundo amarelo, alguém escrevera:

   VENDE-SE

   "Claro, claro", pensou.

   Não havia explicação.

   Mas acaso seria preciso alguma?


Jacques Vénuleth
La boutique du vieux chinois
Paris, Hachette Jeunesse, 2003
(Tradução e adaptação)
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