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Para sempre é muito tempo - A criança perante a morte
Agosto, 2012
Sofia Arriaga - Psicóloga Clínica, Terapeuta Familiar e de Casal

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  Pode parecer estranho refletir sobre a morte e ainda mais sobre o impacto que ela pode ter na criança.

  Embora não seja fácil falar deste tema, faz sentido discorrer sobre ele, já que é a única certeza da nossa vida. De facto, a morte é um dos últimos "Xiusss" da nossa sociedade. Evitamos falar dela. É como se fosse o elefante cor-de-rosa na sala. É uma coisa enorme, visível, incómoda, mas fingimos que não vemos e que não se passa nada. O problema é que se passa e sinceramente parece-me tão essencial falar de morte como saber usar a colher ou apertar os atacadores dos sapatos.

  Claro que aprender a lidar com a morte dói, mas crescer é também saber lidar com a dor emocional. Preparar para a vida é gerir tudo o que vai acontecendo e é trabalhar a vivência de perdas e ganhos. Prepararmo-nos para a vida é simultaneamente prepararmo-nos para a morte.

  A dúvida centra-se, muitas vezes, no que dizer e como dizer. Antes de tudo ou acima de tudo, só podemos falar de algo com uma criança se soubermos primeiro como nos posicionamos em relação a isso – o que sentimos e o que pensamos.

  Uma criança pode suportar muita coisa, desde que haja segurança por parte dos adultos que lhe falam de coisas sérias e desde que lhe seja permitido partilhar os sentimentos naturais que as pessoas têm quando sofrem. E ainda desde que lhe seja dita a verdade - adaptada à sua idade, às suas capacidades, ao seu estilo de vida, às suas crenças – mas, sem dúvida, a verdade.

  Uma vez acompanhei em consulta uma mãe e um filho que tinham perdido respectivamente o marido e o pai. E esta mãe não falava daquela pessoa tão importante para eles, tinha retirado todas as fotografias da sala, todos os vestígios de uma vida a dois e depois a três, para não fazer sofrer o filho. Não se permitia chorar, para não fazer sofrer o filho. Não se permitia falar sobre o amor e a saudade e mesmo sobre as recordações felizes, para não fazer sofrer o filho. E o filho sofria mais e mais e mais. Mas em silêncio, para não fazer sofrer a mãe. E tudo para se protegerem um ao outro. E era uma casa feita de silêncios, de não ditos e de meias verdades. Sem lágrimas. Sobretudo sem lágrimas.

  E perguntam-me também coisas muito concretas, complicadas de perguntar, com sabor a medo, com medo das respostas – E deve ver o avô, a avó, o pai morto? Não, não deve. Não deve ser essa a imagem a recordar. E deve ir ao funeral? Obviamente que depende, mais uma vez, de como os pais/os cuidadores, os adultos que rodeiam a criança se posicionam em relação a isto…mas essencialmente sim.

  A confrontação com a realidade deve ir até ao ponto em que se deve ter a noção de que a perda passa pelo ritual do funeral. É importante que a criança vá? Talvez seja. Porquê? Para ver a tristeza na cara dos outros. É extremamente importante que perceba que aquela pessoa era tão importante para aqueles que ali estão, que todos ficaram mesmo muito tristes com a sua partida. A tristeza vista nos olhos dos outros faz compreender muita coisa, nomeadamente que esse é um sentimento universal. A tristeza, por mais que os adultos-que-querem-proteger-as-crianças pensem o contrário (e entende-se porquê), é reparadora e não deve ser evitada. A ida ao funeral leva a que as crianças vão assimilando uma série de coisas, se não logo, mais tarde, porque levam dentro de si esses pensamentos ainda não pensados. Vão aos poucos tomando consciência de que é essencial vivermos juntos enquanto estamos vivos, que se devem dizer as coisas que se vão sentindo e não guardar tudo cá dentro e ainda que o que partiu não a abandonou ou não se foi embora simplesmente porque quis. A impotência e a raiva perante o desaparecimento do outro têm de ser atribuídas. Assim, a raiva não será dirigida à pessoa que desapareceu, que se foi embora, mas sim à finitude da vida e às regras deste tremendo jogo que se chama viver.

  O ajustamento da criança à perda está de alguma forma dependente do seu entendimento do conceito de morte, que está constrangido pela disponibilidade de certas perícias cognitivas. Uma criança com menos de 7 anos muito dificilmente vai entender a irreversibilidade da morte e pode compreendê-la como se do sono se tratasse. Também a incapacidade de distinguir pensamento e acção pode conduzi-la à crença de que a raiva que sentiu por alguém lhe causou a morte. A partir desta altura, as crianças vão começando a entender os conceito de reversibilidade e de irreversibilidade, podendo ainda não conseguir aceitar a universalidade da morte, ou seja, que também elas irão morrer, que também acontecerá com elas e com quem elas amam. Só na adolescência esta ideia é integrada dentro de si.

  Portanto, uma vez mais, as reacções da criança face à perda vão depender do seu estágio cognitivo, da sua experiência pessoal, familiar, da educação recebida, nomeadamente a religiosa, da forma como os adultos lidaram com ela no que diz respeito à morte e ainda do grau de cuidados que ela perdeu. Assim sendo, para além de tudo o que já foi dito, é muito importante que as funções da pessoa perdida sejam reconhecidas e desempenhadas por outros membros da família. Se os pais emocionalmente não conseguirem prestar estes cuidados e este apoio, deve pedir-se a ajuda da família alargada e dos amigos.

  Neste processo de ajudar a lidar com a dor é importante levar em conta mais algumas questões. É importante não dizer mentiras ou usar eufemismos que confundam a criança ainda mais, mesmo que seja com a melhor das intenções - e isso ninguém duvida que é. A pessoa querida não está a dormir, nem foi fazer uma viagem. As crianças ouvirão e aceitarão literalmente o que lhes é dito.

  Também não se deve também esconder a morte dos animais de estimação. Os animais domésticos terão um papel importantíssimo nesta educação para a vida e para a morte – é um erro, para não fazer sofrer a criança, substituir um animal por outro e dizer que afinal o "Faísca" estava desaparecido, mas já voltou.

  A capacidade reparadora passa ainda por criar rituais e até por aprender a celebrar, nós que somos um povo que temos mais facilidade em sofrer por, do que a celebrarmos algo. "O que é que vamos fazer para nunca nos esquecermos do avô?", "o que é que ele nos ensinou que vai estar sempre connosco?" A reunião das pessoas no aniversário de quem já se foi, para recordar e celebrar a vida da pessoa, pode ser uma experiência profundamente sanadora e vinculativa. Uma característica fantástica dos rituais é que comunicam uma mensagem subliminar muito importante: se fizermos uma série de actos prescritos, então um efeito curativo será atingido.

  E, para terminar, as crianças são resilientes. São mesmo. Isto significa que lidam com a perda consideravelmente bem, com muita coragem – a perda não é só a morte de um ente querido, mas o divórcio dos pais, uma doença na família, o despedimento de um dos progenitores, uma catástrofe natural, o nascimento de um irmão (mesmo as mudanças desejadas acarretam perdas), etc, etc. E isto torna tudo mais fácil. Só que por vezes não é bem assim e nem todas as crianças são assim. É preciso ir estando atento aos sinais: comportamentos diferentes, queixas somáticas, dificuldades nos estudos ou dificuldades relacionais. Negar estes comportamentos é como negar a morte. Dificulta o trabalho adaptativo.

  Estar atento é sem dúvida a melhor política. E usar o bom senso também. E antes de pôr as crianças a pensar sobre isto é importante que nós, adultos, sejamos capazes de o fazer. Pensar sobre a morte não alterará por magia a realidade. Pensar sobre a morte não a fará chegar mais depressa. Não precisamos de nos esconder e dizer "Aqui não está ninguém" porque, na verdade, "à morte ninguém escapa, nem o rei, nem o papa"… nem mesmo nós.
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